É longo e da trabalho IV: Homens Invisíveis

    Autor Mensagem
    Kensei
    Veterano
    # jun/08 · Editado por: Kensei


    'Homens invisíveis': retrato de quem recolhe nosso lixo

    No livro, Fernando Braga da Costa relata a experiência de ser gari e entrar em contato com o mundo através do lixo dos outros





    A cena se repetiu várias vezes. Na área de serviço do apartamento, com as mãos sobre a máquina de lavar e o olhar perdido lá adiante, uma mãe cada vez mais apreensiva volta a fazer a velha pergunta ao rapaz que está a seu lado. "O que você quer com isso, meu filho? Você vai se magoar, vai acabar se machucando. Uma andorinha só não faz verão".

    O que intrigava dona Lêda era que o filho, o estudante Fernando Braga da Costa, estava mesmo disposto a levar adiante o que, de início, era apenas mais um trabalho do curso de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). A tarefa dos 70 alunos da disciplina Psicologia Social II era exercer, por um dia, e ao lado dos trabalhadores reais, uma profissão definida como "subalterna e não-qualificada" . Cada um escolheria a que bem entendesse.

    Fernando, assim como os demais estudantes, cumpriu a tarefa. Mas não limitou a experiência àquele único dia. Por vontade própria, passou a exercer a profissão escolhida – e a viver na pele as conseqüências dela – uma vez por semana. Aliás, é o que faz até hoje, aos 29 anos, nove anos depois da primeira vez. A atividade foi, inclusive, objeto de seu mestrado já concluído e é alvo de seu doutorado em andamento.

    Somente os relatos dos profissionais "subalternos e não-qualificados" , anotados no diário de campo do mestrado ao longo de oito anos, renderam mais de 500 páginas. Antes mesmo da conclusão, a pesquisa ficou famosa, no meio acadêmico e fora dele. Fernando, que não tinha nem sequer a pretensão de escrever um artigo, passou a receber telefonemas de várias partes do país. "Onde é que eu compro o livro?", ouviu, certa vez, de uma sergipana interessada em conhecer melhor a pesquisa.

    A possibilidade de intervir, ainda que de forma miúda, para melhorar a realidade, motivou Fernando a escrever Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. A obra conta a história do relacionamento dele com pessoas que exercem não apenas uma profissão "subalterna e não-qualificada" , mas uma profissão desumana e mal-paga, que condena seres humanos a trabalhos degradantes, a tarefas que ferem não só o corpo, mas também – e principalmente – a alma.

    "O corpo é surrado, sugado, machucado, infestado: a única empresa do trabalhador vai falindo. Sua saúde entra em colapso, com complicações de todas as naturezas e magnitudes. (...) Um dia, a saúde falece, definitiva e precocemente. E a alma – humilhada, comprimida, aviltada, destroçada – permanece". Este e outros trechos igualmente contundentes nos mostram como é cruel o dia-a-dia e o destino de quem entra em contato com o mundo através do contato direto com o lixo e o material desprezado pelo mundo, por todos nós. Como é ingrato ser gari. Varredor de rua. Lixeiro. Subalterno. Não-qualificado.

    Ocupante do cargo mais raso, denominado "ajudante de serviços gerais", gari não é consultado sobre qual trabalho deve ser feito antes. Não escolhe suas ferramentas e delas não pode reclamar, mesmo que sejam inadequadas, perigosas, desgastadas – enfim, mesmo que nem ao menos pareçam projetadas para o corpo humano. O trabalho – sujo, insalubre, braçal, repetitivo, humilhante – é exercido sob hierarquia severa e autoritária. Pior: por tudo isso, quem é gari deixa de ser visto como pessoa e passa a ser visto – quando visto – apenas como função. Geralmente, como provam diversos episódios do livro, gari passa despercebido. Não é notado ou cumprimentado. Vira homem invisível.

    A leitura do livro provoca questionamentos que se repetem a cada página. Quantas vezes não notei um varredor na rua? Quantas vezes não lhe dei um simples bom dia? Quantas vezes passei por ele como se estivesse passando ao lado de um item paisagístico? "Um poste, uma árvore, uma placa de sinalização de trânsito, um orelhão, uma pessoa em uniforme de gari na atmosfera social: todos parecem valer a mesma coisa", constata Fernando em seu livro.

    Arrogância e humildade
    Diferentes capítulos mostram a forma arrogante como alunos, professores e funcionários da USP costumam (quando os notam) tratar os garis que trabalham para a prefeitura da universidade – foram esses, os garis da USP, os trabalhadores escolhidos por Fernando ainda durante sua graduação. "Tem gente que passa aqui, é como se a gente não existisse", conta um de seus companheiros.

    Vestindo o uniforme de gari, Fernando quase nunca foi reconhecido ao cruzar com professores ou colegas estudantes do Instituto de Psicologia. Depois de um tempo, acostumou-se. Mas, no começo, a sensação era desconcertante, como revela no livro: "As pessoas pelas quais passávamos não reagiam à nossa presença. (...) Nenhuma saudação corriqueira, um olhar, sequer um aceno de cabeça. Foi surpreendente. Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível".

    Como os professores da USP – os nomes não são citados –, principalmente os de Psicologia, reagiram à publicação dessas histórias e mesmo ao sucesso do livro? "Não faço a menor idéia", responde Fernando, por telefone, ao chegar em casa após a rotineira viagem de 40 minutos de carro entre São Paulo – onde é professor de faculdade particular – e Jundiaí – onde mantém consultório e mora com a esposa e a filha de pouco menos de um ano.

    "Ouço falar das reações, mas nada muito consistente. Mas universidade é uma fogueira de vaidades, ainda mais a USP. Então imagine o que pensam professores que têm 20, 30 anos de faculdade quando ficam sabendo que um trabalho de um 'estudante de merda' teve tanta repercussão.. ."

    No dia seguinte, da casa de seus pais no bairro paulistano da Vila Madalena (onde, para economizar, dorme algumas vezes durante a semana), Fernando conta que, à tarde, havia recebido um repórter da Folha de S.Paulo. E que já foi convidado a falar para Fantástico, Jornal Nacional, Jornal da Band, programa do Clodovil. Mas, da televisão, só aceitou participar do Programa do Jô.

    Mesmo por telefone, é fácil notar a serenidade e a humildade de Fernando, homem simpático e solícito, frente à fama repentina. "Poderia me deslumbrar, mas o trabalho com os garis me educou, me preparou para evitar isso". Por sinal, nem os varredores se deixaram deslumbrar, apesar das várias matérias de revistas e jornais em que aparecem. Sobre o livro, um deles se limitou a dizer a Fernando que "o nosso trabalho é isso mesmo que tá escrito" e, em seguida, voltou ao serviço.

    Isso não significa, no entanto, que eles tenham ficado indiferentes. Ao ver uma reportagem da revista Caros Amigos, em que aparece em uma foto ao lado do hoje psicólogo Fernando Braga da Costa, Josias, um dos garis, não conteve a emoção e começou a chorar. "Naquele momento, senti que eles se deram conta de que, de alguma forma, estava acontecendo o que me pediram quando eu ainda era estudante: que eu 'botasse a boca no mundo' por eles, que são tão impedidos que nem voz têm em nossa sociedade", diz o autor.

    Indignação e poesia
    Embora intercaladas por alguns trechos mais técnicos, que dão sustentação teórica ao trabalho, as histórias são contadas com um misto de emoção e indignação pulsante, e em alguns momentos o texto preciso de Fernando Braga da Costa chega a ser poético.

    "Escrevi muita poesia quando era adolescente e, no início da faculdade, escrevia uma ou duas por dia. Mas sentia que, frente ao conhecimento acadêmico, minhas paixões pareciam coisas idiotas", lembra. Nessa época, diz, o apoio de sua terapeuta foi fundamental: "Quem sabe você não consegue juntar o rigor científico com a poesia?", era a aposta dela. Foi algo bem próximo disso o que Fernando fez em seu livro, lançado pela Editora Globo no final de 2004.

    Apesar de alguns jornalistas terem escrito que a obra tem como propósito clamar por "melhores condições de trabalho" aos garis, Fernando fez questão de repetir, na entrevista, o que defende várias vezes em Homens invisíveis: o fim de profissões como gari e tantas outras.

    Seu orientador, José Moura Gonçalves Filho, o Zeca, pensa da mesma forma. "Se nossos sentidos e corpos fossem feridos como o são entre os garis, compreenderíamos mais facilmente a necessidade de socialmente cancelarmos trabalhos degradantes, para a alma e para o corpo humanos". Zeca, que assina o prefácio de Homens invisíveis, afirma no livro que trabalhos como esse "não devem ser reservados a uma classe de homens rebaixados e degradados, mas precisariam ser socialmente generalizados, um dever de todos e cada um".

    O convívio de uma década com os varredores transformou a vida de Fernando. "Parece que este mundo não me serve mais. Se vou a um restaurante, a sensação é desagradável quando sou atendido pelo garçom. Ele parece ser o antigo escravo a serviço da casa grande, ele me serve mas não pode compartilhar a refeição comigo."

    O que o psicólogo não esperava era que sua obra pudesse também causar transformações no comportamento de seus leitores. Meses atrás, ouviu, de um jornalista gaúcho que o havia entrevistado dias antes, o seguinte relato: "A gente estava entrando na sala de aula da pós-graduação e, ao passar pela faxineira, nenhum dos meus colegas deu bom dia a ela. Mas, quando eu a cumprimentei, ela ficou visivelmente muito feliz, conversou comigo..."

    Fernando diz que, emocionado, respondeu ao jornalista com um nó na garganta. "Não sei se era isso o que eu queria com meu livro. Dez anos atrás, eu não queria nada, não tinha nenhuma pretensão. Mas se o livro serviu ao menos para isso, para mudanças de atitude como essa, eu já fico muito feliz".

    The Painkiller
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Kensei
    Man, esta é uma situação complicada. Na minha profissão, consiste no setor que mais ocorre evasão profissional. Muito complicada, das qestões sociais, é a mais frustrante.

    Kensei
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    É isso mesmo que acontece, infelizmente os garis acabam fazendo parte da "paisagem" para todos nós, não sou hipócrita de negar que não os vejo assim. É lamentável. Nossa sociedade nos envolve de tal maneira que perdemos o foco do que é importante de fato.

    Entretanto, só pra ilustrar, acontece algo parecido comigo no caso dos garçons, nunca gostei de ser servido, todas as vezes sinto que fico sem jeito.

    The Painkiller
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Impressionante como o pessoal se esquiva de um assunto de responsabilidade social. Mais invisivel q estes homens só o topico.


    só lamento. :/

    Carla Andréa
    Veterano
    # jun/08 · Editado por: Carla Andréa
    · votar


    "Poderia me deslumbrar, mas o trabalho com os garis me educou, me preparou para evitar isso".

    A riqueza onde menos se espera né...

    o fim de profissões como gari e tantas outras.

    Sou totalmente a favor disso.

    Sempre passei, desde a época de escola, pelos serventes e os cumprimentei, não só por educação, mas por saber q alí tratava-se de uma pessoa como outra e que deve ser lembrada, deve ser tratada de igual para igual.

    Boa, Jëder!

    Carla Andréa
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Mais invisivel q estes homens só o topico.

    É que o pessoal aqui prefere discutir a bunda da mulher melancia.

    Kensei
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Carla Andréa
    The Painkiller

    Nós três já lemos, pelo menos.

    Philipius
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    É isso mesmo que acontece, infelizmente os garis acabam fazendo parte da "paisagem" para todos nós, não sou hipócrita de negar que não os vejo assim. É lamentável. Nossa sociedade nos envolve de tal maneira que perdemos o foco do que é importante de fato.

    Entretanto, só pra ilustrar, acontece algo parecido comigo no caso dos garçons, nunca gostei de ser servido, todas as vezes sinto que fico sem jeito.

    É por aí mesmo.
    Interessante iniciativa desse psicólogo.
    Tomara que repercuta de fato.

    The Painkiller
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Kensei
    :)

    Carla Andréa
    é. :/

    Adrianodevil
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Ótimo texto...

    Realmente é o que acontece... É uma mistura de duas coisas... Homens invisíveis e homens cegos... Mundo estranho esse...

    B4cK5p4c3
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Carla Andréa
    Se fosse só aqui no fórum...

    Carla Andréa
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    B4cK5p4c3

    O espaço em questão é aqui...

    B4cK5p4c3
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    *B4cK5p4c3 sai da sala de cabeça baixa*

    The Painkiller
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    naum q bunda naum seja um assunto profundo mas..

    B4cK5p4c3
    se desse pr mudar pelo MENOS aqi no forum...

    Rod Turtle
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Quem não vive para servir não serve para viver.

    Grow
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    a bunda da mulher melancia.
    q tem ela?

    Bizet
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Eu falo com todo mundo, é mania minha. Não consigo passar por alguém com quem me "encontro" todos os dias e não falar um "bom dia" ou "diga aí", me sinto incomodado. Até mesmo com ex-professores, não entendo como que os alunos passam por um professor, que os deu aula o ano todo (ou mais de um ano), e não falam :S

    Aliás, uma vez, o ar condicionado de minha sala tava com problema, e começou a pingar bastante água, então chamaram uma faxineira pra enxugar e colocar um balde. Quando ela entrou, eu falei "tia", com um aceno de cabeça, até porque eu já a conhecia e tal. Fui o único a falar, e o professor nem mesmo parou a aula enquanto ela limpava o chão. E o pior nem foi isso, o pior foi meu colega falando comigo, quando ela saiu: "pra quê você fala com graxeira"? Triste...

    Bog
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Kensei

    Sabe o que é foda? Eu de certa forma devo minha educação a pessoas como eles. Meu pai é gerente em uma empresa de coleta de resíduos - ou, como diziam os amigos dele, o gari-chefe. Então, enquanto vivi às custas do meu pai, quem pagava a minha escolinha particular, cursinho, minha comidinha, minha roupa limpinha, eram eles.

    The Painkiller
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    E ainda tem gente q joga porcari a no shão e diz q eh pra naum tirar o emprego do gari. dei um esporro num cara q disse isso dia destes.

    GAROTA
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    shão <o>
    num faz issooo

    The Painkiller
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    GAROTA
    shão?
    xão??
    ou seria chaoum??

    GAROTA
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Desde criança eu sempre me questionei sobre a vida dos lixeiros..
    Aqui na minha cidade, eles entregam, uma semana antes do natal, um cartãozinho desejando boas festas e tals, e pedem se alguém puder doar algum alimento.. Todo ano lá em ksa a gente sempre separa umas coisas pra eles.. lembro que uma vez, eu tinha uns 6 anos, eu fiz um cartão de natal, escrevi com aquela letrinha de criança e tals falando que eu admirava muito o trabalho deles, que era um trabalho dificil que só um homem de coragem poderia fazer, e entreguei pro lixeiro que passava na minha rua.. ele ficou muito emocionado e até chorou.. Não esqueço as palavras dele: "Deus te abençoe filhinha, você tem um coração muito bom"..
    Acho que eu nunca vou esquecer disso.. foi uma coisa simples e espontânea, eu era só uma criança, mas aprendi mt com isso..

    GAROTA
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    The Painkiller

    chão =p

    Koisa
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    GAROTA

    Oi amor S2

    Sab_Ian
    Veterano
    # jun/08 · Editado por: Sab_Ian
    · votar


    Kensei

    Adorei esse texto.

    Eu já tive aquela sensação de quando Fernando disse que vai ao restaurante e o garçom não pode compartilhar a refeição com ele. Isso porque eu já fui garçom... É uma sensação incômoda, gritante. Imagine para um gari, quando não é notado. Ele não pode dizer o que pensa, ninguém dá atenção a ele... Fiquei surpreso quando vi no texto que Fernando se vestiu de gari e ninguém reparava nele.

    Prova de que um simples bom dia pode mudar o dia ou a vida de uma pessoa.

    The Painkiller
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    GAROTA
    chão
    chão
    até o chão!!

    :PPPPPPPPP

    Bruno Fernandes
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Kensei

    minha professora contou essa historia igualzinha um dia desses na sala, ela estava falando sobre invisibilidade social.

    Basshero
    Veterano
    # jun/08
    · votar


    Excelente texto!!!

      Enviar sua resposta para este assunto
              Tablatura   
      Responder tópico na versão original
       

      Tópicos relacionados a É longo e da trabalho IV: Homens Invisíveis