m.veloso Veterano |
# out/12
Aqueles que identificam de ouvido qualquer nota musical provocam espanto até entre os músicos. Agora, esse poder misterioso - o ouvido absoluto - começa a ser decifrado nos seres humanos e nos pássaros canoros. E há cientistas que acham que ele é acessível a qualquer mortal.
por Nelson Jobim, de Londres
Muito antes de ficar famoso pelas Bachianas Brasileiras e outras obras-primas da música erudita, Heitor Villa-Lobos já era um menino prodígio, violoncelista profissional aos 12 anos de idade. Mas seria impossível dizer quanto desse talento precoce já tinha nascido com ele. Desde cedo, o genial compositor foi educado pelo pai, músico amador dos mais apaixonados – e professor ultra-rigoroso. Parte de seu método consistia em obrigar o filho a identificar quais notas musicais eram emitidas em qualquer som ambiente, do pio de um passarinho ao freio de um trem. E, toda vez que errava – crock! –, o pobre Heitor entrava no cascudo. Agora a Ciência está descobrindo, tal como no caso do maestro brasileiro, que o ouvido absoluto não é um dom divino, mas algo que pode ser adquirido por meio de treinamento, desde que feito na infância. Até há pouco, acreditava-se que ele era um privilégio inato e raríssimo, prerrogativa de uma em cada 10 000 pessoas. Essa visão começa a ser derrubada. Há pesquisadores que acham até que todos nascemos com esse potencial. A educação do ouvido começa cedo É fácil para um professor de música reconhecer os alunos que têm ouvido absoluto. Essa tribo superdotada costuma sofrer da compulsão de identificar musicalmente qualquer ruído. Há até uma anedota a respeito do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) quando jovem. Uma vez ele teria exclamado “Sol sustenido!” ao ouvir o guincho de um porco. Mozart, a mais célebre criança prodígio na história da música, tinha em comum com Villa-Lobos um pai ambicioso e exigente, que o obrigava a estudar noite e dia. A questão é saber se ele desenvolveu seu talento extraordinário porque começou cedo ou se começou cedo porque tinha um dom natural. Nos Estados Unidos, uma pesquisa apresentada em novembro à Sociedade Acústica Americana conclui que todos nós temos, pelo menos em potencial, um ouvido absoluto. Sua autora, a psicóloga Diana Deutsch, da Universidade da Califórnia, partiu de uma analogia com as línguas tonais – as diversas línguas, na maioria asiáticas e africanas, em que uma mesma palavra pode ter diferentes significados apenas variando a entonação. Deutsch fez um grupo de vietnamitas e chineses repetir os mesmos vocábulos em dias diferentes, analisando os resultados em computador. As diferenças não ultrapassavam um semitom. Tão pouca alteração sugere que os falantes de línguas tonais teriam, todos, ouvido absoluto, pois dependem disso para se entender. “Não quer dizer que sejam capazes de identificar notas musicais. Afinal, não foram treinados para isso”, explicou a pesquisadora à SUPER. “Mas, como aprenderam uma língua tonal na infância, desenvolveram o dom. Se eles puderam, todos podemos, desde que a educação musical não seja tardia”, garante. De pai para filho É claro que a disposição genética também conta. O geneticista Peter Gregersen, da Universidade de Nova York, pesquisou 600 indivíduos com ouvido absoluto e descobriu que “25% dos seus filhos também têm essa capacidade, em comparação com 1% dos filhos de músicos sem ouvido absoluto”. Mesmo assim, Diana Deutsch e Daniel Levitin, psicólogo da Universidade McGill, no Canadá, acham que todos podemos ser educados até desenvolver o dom, independentemente da nossa herança genética. “Cerca de 95% dos filhos de falantes de persa também falam persa”, disse Levitin à SUPER. “Isso não é um fenômeno genético, mas um fato cultural e lingüístico. Tanto que, se você aprender uma língua depois de uma certa idade, sempre terá sotaque e dificuldade de raciocinar nela.” A diferença está, segundo Levitin, em aprender entre 3 e 6 anos. No máximo até os 9 anos. Na música, dizem os pesquisadores, aconteceria a mesma coisa. Quando uma criança ouve a mãe dizer: “Isto é vermelho, aquilo é marrom”, aprende a identificar a cor com a palavra. Se ouvir um instrumento de som nítido, como piano ou xilofone, e lhe disserem “isto é um dó”, fará a mesma ligação. “O aprendizado transforma essa associação num reflexo condicionado”, diz Levitin (veja na página 58). Combinar genética com educação é a receita de sucesso. Quem nunca teve um músico na família, certo, tem menos chance. Mas basta os seus pais cantarem afinado no banheiro para você poder investir no treinamento do seu filho como um novo Villa-Lobos – talvez até melhor, sem cascudo. O essencial é educá-lo na infância. “Não acredito que o dom seja 100% natural nem algo que qualquer um possa aprender”, diz o neurologista alemão Gottfried Schlaug, hoje na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. “Afinal, muitos já tentaram, sem sucesso. Mas ninguém desenvolve ouvido absoluto sem estar exposto à música desde cedo.” Resta um detalhe. O dom não garante criatividade na composição nem genialidade na interpretação. Helen Tucker, professora de música para crianças em Londres, faz questão de ressaltar à SUPER: “Um músico com ouvido absoluto pode tocar como um robô. Perfeição técnica não significa expressividade.” Cérebro de músico é bem especial Lobo temporal é o nome da região do córtex cerebral onde são processados os sinais sonoros. “Deduzo que a habilidade de produzir música também deve estar lá”, afirma o neurologista alemão Helmut Steinmetz, um dos pesquisadores da Universidade Henrich Heine, de Düsseldorf, Alemanha, responsáveis pela descoberta de que os músicos têm o lobo temporal esquerdo maior que o dos outros indivíduos. Steinmetz e seu parceiro Gottfried Schlaug compararam, em exames de ressonância magnética, o cérebro de trinta músicos – onze com ouvido absoluto e dezenove sem – com os de outros trinta indivíduos. Em todos, o lobo temporal esquerdo é um pouco maior que o direito, mas essa diferença chega a ser duas vezes maior entre os músicos e maior ainda entre os portadores de ouvido absoluto. Para o neurologista Robert Zatorre, do Instituto Neurológico de Montreal, no Canadá, essa constatação torna-se ainda mais surpreendente se considerarmos que o lado esquerdo do cérebro é associado a funções verbais e analíticas e o lado direito à intuição e às artes. Se os músicos têm o lobo temporal esquerdo maior, isso significa que esse hemisfério cerebral também recebe informações musicais – e não apenas o direito. O que indica, claramente, que a música, além de arte, também é linguagem. “Cada um desses hemisférios deve processar diferentes elementos musicais”, conclui Zatorre. Na experiência realizada por Steinmetz e Schlaug na Alemanha, o mais extraordinário foi a conclusão de que o cérebro pode aumentar de tamanho com treinamento. Schlaug disse à SUPER que “um lobo temporal esquerdo maior do que o direito é a condição necessária para a formação de um ouvido absoluto”. Parece espantoso, mas não é. Segundo Daniel Levitin, as imagens do desenvolvimento do cérebro feitas pela neurologista Helen Neville, em 1994, na Universidade de Oregon, “revelam um enorme crescimento das conexões neurais até os 9 anos de idade e o final desse processo aos 18 anos”. Isso explica tanto a facilidade das crianças de aprender línguas ou de adquirir ouvido absoluto quanto de até aumentar o tamanho do cérebro. Assim, ter percepção genial fica mais fácil. Para saber mais Voz Cantada, Henrique Olival Costa e Marta de Andrada Silva, Editora Lovise, São Paulo, 1998.
Fonte: http://super.abril.com.br/ciencia/dom-genio-441358.shtml?utm_source=re desabril_jovem&utm_medium=twitter&utm_campaign=redesabril_super?utm_so urce=redesabril_jovem&utm_medium=facebook&utm_campaign=redesabril_supe r&
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