Clave Veterano |
# abr/07
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Caramba, li um texto, escrito pelo jornalista e escritor Affonso Romano de Sant’Anna, publicado em 2001, que é apenas fabuloso:
abre aspas
“Não sei com que armas os homens lutarão na Terceira Guerra, mas na Quarta, será a pau e pedra” — Einstein
Os homens amam a guerra. Por isso se armam festivos em coro e cores para o dúbio esporte da morte.
Amam e não disfarçam. Alardeiam esse amor nas praças, criam manuais e escolas, alçando bandeiras e recolhendo caixões, entoando slogans e sepultando canções.
Os homens amam a guerra. Mas não a amam só com a coragem do atleta e a empáfia militar, mas com a piedosa voz do sacerdote, que antes do combate serve a hóstia da morte.
Foi assim na Criméia e Tróia, na Eritréia e Angola, na Mongólia e Argélia, no Saara e agora.
Os homens amam a guerra
E mal suportam a paz.
Os homens amam a guerra, portanto, não, não há perigo de paz.
Os homens amam a guerra, profana ou santa, tanto faz.
Os homens têm a guerra como amante, embora esposem a paz.
E que arroubos, meu Deus! nesse encontro voraz! que prazeres! que uivos! que ais! Que sublimes perversões urdidas na mortalha dos lençóis, lambuzando a cama ou campo de batalha.
Durante séculos pensei que a guerra fosse o desvio e a paz a rota. Enganei-me. São paralelas margens de um mesmo rio, a mão e a luva o pé e a bota. Mais que gêmeas são xifópagas, par e ímpar, sorte e azar são o ouroboro — cobra circular eternamente a nos devorar.
A guerra não é um entreato.
É parte do espetáculo. E não é tragédia apenas é comédia, real ou popular, é algo melhor que circo: — é onde o alegre trapezista vestido de kamikaze salta sem rede e suporte, quebram-se todos os pratos e o contorcionista se parte no kama sutra da morte.
A guerra não é o avesso da paz. É seu berço e seio complementar. E o horror não é o inverso do belo — é seu par. Os homens amam o belo mas gostam do horror na arte. O horror não é escuro, é a contraparte da luz. Lúcifer é Lubel, brilha como Gabriel e o terror seduz. Nada mais sedutor que Cristo morto na cruz.
Portanto, a guerra não é só missa que oficia o padre, ciência que alucina o sábio, esporte que fascina o forte. A guerra é arte. E com o ardor dos vanguardistas freqüentamos a bienal do horror e inauguramos a Bauhaus da morte.
Por isso, em cima da carniça não há urubu, chacais, abutres, hienas. Há lindas garças de alumínio, serenas, num eletrônico balé.
Talvez fosse a dança da morte, patética. Não é. É apenas outra lição de estética. Daí que os soldados modernos são como médico e engenheiro e nenhum ministro da guerra usa roupa de açougueiro.
Guerra é guerra! dizia o invasor violento violentando a freira no convento Guerra é guerra! dizia a estátua do almirante com a boca de cimento. Guerra é guerra! dizemos no radar degustando o inimigo ao norte do paladar.
Não é preciso disfarçar o amor à guerra, com história de amor à pátria e defesa do lar. Amamos a guerra e a paz, em bigamia exemplar. Eu, poeta moderno ou o eterno Baudelaire eu e você, hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère.Queremos a batalha, aviões em chamas navios afundando, o espetacular confronto.
De manhã abrimos vísceras de peixes com a ponta das baionetas e ao som da culinária trombeta enfiamos adagas em nossos porcos e requintamos de medalha — os mortos sobre a mesa.
Se possível, a carne limpa, sem sangue. Que o míssil silente lançado à distância não respingue em nossa roupa. Mas se for preciso um “banho de sangue” — como dizia Terêncio: — “sou humano e nada do que é humano me é estranho”.
A morte e a guerra não mais me pegam ao acaso. Inscrevo sua dupla efígie na pedra como se o dado de minha sorte já não rolasse ao azar, como se passasse do branco ao preto e ao branco retornasse sem nunca me sombrear.
Que venha a guerra! Cruel. Total. O atômico clarim e a gênese do fim. Cauto, como convém aos sábios, primeiro bradarei contra esse fato. Mas, voraz como convém à espécie, ao ver que invadem meus quintais, das folhas da bananeira inventarei a ideológica bandeira e explodirei o corpo do inimigo antes que ataque.
E se ele não atirar primeiro, aproveito seu descuido de homem fraco, invado sua casa realizando minha fome milenar de canibal rugindo sob a máscara de homem.
— Terrível é o teu discurso, poeta! Escuto alguém falar. Terrível o foi elaborar. Agora me sinto livre. A morte e a guerra já não podem me alarmar. Como Édipo perplexo decifrei-a em minhas vísceras antes que a dúbia esfinge pudesse me devorar.
Nem cínico nem triste. Animal humano, vou em marcha, danças, preces para o grande carnaval. Soldado, penitente, poeta — a paz e a guerra, a vida e a morte me aguardam — num atômico funeral.
— Acabará a espécie humana sobre a Terra? Não. Hão de sobrar um novo Adão e Eva a refazer o amor, e dois irmãos: — Caim e Abel — a reinventar a guerra.
fecha aspas
Pessoal, nós não temos jeito, estamos ferrados mesmo e acabou.
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