Cassio Veterano |
# jan/04
Saber teoria ou tocar de ouvido?
Por que existe a rixa entre os que defendem a idéia de que é melhor tocar "de ouvido" (e até se orgulham de não saber teoria) e os que acham que quem não sabe teoria musical não pode chegar a tocar bem? Afinal, quem está com a razão? Para entender este assunto, é necessário primeiro explicar quais são as áreas do conhecimento que estão em jogo quando tocamos um instrumento ou, melhor, quando fazemos música.
As três áreas que formam o músico:
A mais importante é a musicalidade, que envolve intuição, criatividade, memória, senso harmônico, senso melódico, senso rítmico, etc. É difícil de avaliar, porque não é mensurável, além de ser muito subjetiva. Mas todos nós conhecemos alguém que toca bem sem ter conhecimento de teoria, ou "tira" harmonias complicadas rapidamente, ou compõe músicas sem sequer tocar um instrumento, ou canta muito bem... Essas pessoas provavelmente têm boa musicalidade e, por uma série de motivos que não cabe comentar aqui, desenvolveram desde cedo essa aptidão.
O conhecimento formal se refere às informações teóricas que o músico adquiriu (escalas, acordes, intervalos, progressões, em suma, a lógica da música), como ele as processa e, principalmente, com que velocidade. Isso significa que não adianta, por exemplo, estudar as escalas e não conseguir localizar rapidamente as notas ou um intervalo qualquer.
A terceira área em questão é a técnica (ou habilidade motora), que envolve precisão, sincronia, rapidez, força, resistência, coordenação, o "toucher" ou "pegada", etc. O aluno iniciante se liga mais nessa área já que as outras duas são mais difíceis de entender e avaliar para quem está começando. Mas na realidade a habilidade motora é a mais fácil de se conseguir, já que não exige nem ouvido, nem inteligência, somente repetição. O aluno pode ser burro como uma porta e ter o ouvido musical de uma pedra e, no entanto, ter uma tremenda técnica, porque só existe um meio de conseguir destreza ou rapidez: através da repetição. Já a musicalidade e o conhecimento teórico...
E onde está a briga?
Aparentemente uma área não se opõe à outra. Mas o problema é que é muito difícil ser um músico com as três áreas bem desenvolvidas.
Existem músicos com tremenda musicalidade, mas ruins de teoria, e vice-versa. Ou ainda, músicos muito criativos e com grande domínio da teoria, porém com técnica fraca (e vice-versa também).
Já os grandes são certamente bons nas três áreas, ou seja, são muito musicais e criativos, sabem tudo de teoria e ainda por cima tem uma tremenda técnica, como por exemplo, Pat Metheny, Jaco Pastorius, Herbie Hancock, Chick Corea, Michael Brecker, Nicholas Payton ou Hermeto Paschoal.
Outros compensam falhas de um lado com talento demais de outro. Tomemos como exemplo George Benson, um colosso da guitarra que é um tanto fraco de teoria.Ele não é um músico de grande conhecimento formal, mas é extremamente musical, muito criativo, tem um senso rítmico e um suingue extraordinário, além de uma técnica infernal, o que significa que ele não precisa se preocupar com seus "defeitos".
Já Jim Hall não tem uma técnica própria de virtuose (nem nunca quis tê-la), mas é um músico com uma linguagem muito especial, também muito criativo, e dono de um estilo muito sofisticado que evidencia seu altíssimo nível de conhecimento.
O pianista César Camargo Mariano não é um virtuose do ponto de vista técnico, mas é um músico genial, grande arranjador, e não há livro que possa ensinar a ter o seu "balanço". Já Al de Meola (por citar um exemplo qualquer) tem ótima técnica, mas no quesito musicalidade deixa muito a desejar.
Mas por que a teoria parece tão difícil?
Em primeiro lugar, imaginemos um aluno começando a aprender: ele ainda não desenvolveu nem o ouvido, nem a técnica e não sabe teoria. É capaz de errar as notas e não perceber (ouvido), quer tocar rápido e não consegue (técnica), e também não entende porque o solo é assim ou assado, enfim, qual a lógica na escolha das notas, etc (teoria).
À medida que começa a praticar, o ouvido e os dedos melhoram, mas o raciocínio acaba ficando para trás. Mas por que isso acontece? Porque o aluno não tem consciência de que, assim como treina o ouvido e a técnica, tem que treinar os neurônios! Então, com o tempo, esse aluno consegue "tirar" alguma melodia ou um acompanhamento simples. Também a sua habilidade motora vai melhorando, já consegue tocar mais rápido ou fazer pestanas, por exemplo.
Mas provavelmente ainda demora em achar as notas do instrumento, "apanha" para ler partitura, se confunde com as distâncias entre as notas, etc. Isso, se ele tiver um professor que lhe ensine teoria. Caso contrário, nem isso sequer.
E, se esse aluno for realmente bom de ouvido, ele vai desenvolver mais rapidamente a intuição e vai ficar defasado em relação à teoria, porque será mais rápido para ele confiar na intuição do que pensar. E esse é o xis da questão: enquanto para você for mais rápido "chutar" do que pensar, você vai chutar! Pode estudar quanta teoria quiser, na hora "h" não vai usá-la, vai apelar para o ouvido mesmo.
Mas aí chega a pergunta: é necessário saber teoria?
Sim e não, dependendo do estilo e do músico. Geralmente não é necessário saber teoria para tocar blues ou rock'n'roll, que são estilos intuitivos e de estrutura simples (estamos julgando a estrutura formal, não questionando o gosto musical). O mesmo acontece com a música sertaneja, pagode, forró e folclore no geral. Imagine alguém fazer faculdade de música para tocar sertanejo ou pagode!
Já para tocar Jazz ou MPB -tocar bem mesmo- é necessário saber teoria, é quase impossível tocar só de ouvido esses estilos, exceto para alguns escolhidos como Wes Montgomery (que também não era assim tão ignorante como reza a lenda).
É que, devido à complexidade harmônica, melódica e rítmica desses estilos, é necessário tocar "pensando", é dificil desligar completamente o raciocínio. O que não significa falta de sentimento ou de "feeling".
No entanto, com o blues se dá o inverso: ele é pura intuição e exige principalmente domínio da linguagem, do sotaque característico, e, se complicar muito, deixa de ser blues.
O mesmo acontece com os estilos "comerciais" como o pagode ou o sertanejo: quanto mais o músico sabe, mais atrapalha. Se ele colocar outras harmonias, ou fizer solos com escalas mais sofisticadas, vai ficar estranho, fora do contexto. Mas, seja qual for o estilo, é imprescindível tocar com o sotaque próprio dele, com a linguagem e a "pegada" características. É por isso que às vezes um guitarrista de jazz não consegue tocar rock ou blues, pois ele tem o conhecimento e a técnica necessários, mas não tem incorporado o sotaque e a "pegada" do estilo. Já um guitarrista de rock pode até ter a técnica necessária para tocar jazz, mas, além de não ter o sotaque, provavelmente vai lhe faltar o conhecimento necessário. (O nível de complexidade entre o rock e o jazz é muito diferente. Um exemplo: no rock geralmente é possível utilizar uma única escala para toda a progressão harmônica. Já no jazz, cada acorde tem uma escala diferente).
O que fazer então?
Em primeiro lugar, faça uma auto-avaliação para saber que tipo de músico é você. No geral, existem dois tipos de músico (principalmente guitarristas): aquele que toca mais do que sabe e aquele que sabe mais do que toca (é claro que entre as duas alternativas, é melhor a primeira, sem dúvida). O ideal seria saber tanto quanto toca e tocar tanto quanto sabe, aliado a uma boa técnica.
Se você se encaixa na primeira categoria, então precisa saber mais. Se, pelo contrario, você é um musico do segundo tipo, esqueça a teoria e desenvolva seu ouvido.
Vamos explicar melhor: quem toca mais do que sabe depende somente da intuição e não conta com a ajuda da teoria. Por isso no geral ele fica estacionado, ou seja, quando atinge o limite da sua intuição (chamada popularmente de "antena") ele passa a tocar sempre igual, mantendo mais ou menos o mesmo nível. E como melhorar então? Como conseguir dar uma "deslanchada" evidente? Bom, se ele toca mais do que sabe e atingiu o limite da sua intuição, então ele precisa desenvolver mais o conhecimento formal. Em outras palavras: se os dedos funcionam e o ouvido também funciona e mesmo assim ele se sente estacionado, a solução é saber mais.
No entanto, se o seu caso é que sabe mais do que toca, então esqueça por um tempo a teoria, e direcione seu estudo para o desenvolvimento da intuição, a musicalidade, a "antena". Nessa situação é bom tentar tirar harmonias, melodias, solos ou batidas de ouvido mesmo. Veja que não faz sentido conhecer muita teoria, ler muito bem partitura e não conseguir tirar músicas simples como as de Green Day ou Legião Urbana. A solução é, basicamente, muita paciência e ouvido na vitrola, como se dizia antigamente.
E se você não desenvolveu nem o ouvido nem o conhecimento, somente a técnica, então provavelmente pode vir a ser aquele tipo de músico que toca "decoreba", sem musicalidade nem compreensão do que está executando (literalmente). Fique esperto e equilibre sua formação musical procurando a orientação de um bom professor.
Resumindo...
O músico precisa fazer periodicamente uma auto-avaliação para verificar se está desenvolvendo equilibradamente a musicalidade, o conhecimento e a técnica.
O ouvido e a técnica são muito importantes, mas não se pode permitir que "o dedo passe na frente da cabeça". Mas atenção: se você não sabe nada, nada mesmo de teoria e consegue improvisar maravilhosamente sobre "Giant Steps" de John Coltrane, ou tira tranqüilamente todos os solos de Steve Morse e Greg Howe, ou toca blues como Steve Ray Vaughan (que não sabia nem meia nota), ou tem a "pegada" poderosa do Van Hallen, acha todas as harmonias do Toninho Horta, ou tira os arranjos do Martin Taylor ou do Raphael Rabello, então não se preocupe! Você não precisa saber teoria mesmo!
Infelizmente a maioria dos mortais não tem essa intuição excepcional, precisam unir a musicalidade com o conhecimento (grande dupla!), exceto, como dissemos antes, se o estilo não exige conhecimento formal. Mas mesmo nesse caso o conhecimento ajuda, de nenhuma maneira atrapalha, desde que o músico saiba utilizar a linguagem certa.
Resumindo, se você precisa do conhecimento formal (como a maioria dos músicos) então faça que ele seja muito mais rápido do que a sua técnica, (não se preocupe, o pensamento é muito mais rápido que o dedo mais veloz, é só praticar).
Caso contrário estará estudando teoria à toa e ainda corre o risco de se tornar não um músico e sim um "digitador", em outras palavras, um datilógrafo em lugar de um poeta
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