Juliano de Oliveira Veterano |
# set/05
A cada cem pessoas, cinco são o público sonhado por cantores de chuveiro não muito habilidosos: não conseguem de jeito nenhum ouvir problemas numa canção desafinada, segundo um estudo inglês de 1980. Mas esse público ideal pode ser quase dez vezes maior. Uma nova versão do estudo, publicada na revista Science em março de 2001, sugere que quarenta em cada cem pessoas têm muita dificuldade para perceber notas desafinadas. E mais: 80% da culpa seria dos genes recebidos dos pais.
O novo estudo analisou as habilidades de "detecção de notas desafinadas" de um total de 568 mulheres de 18 a 74 anos de idade, que tinham a particularidade de se dividirem em 284 pares de irmãs gêmeas. Tantas gêmeas puderam ser convidadas a participar do estudo graças ao registro mantido pelo Hospital Saint Thomas, em Londres, criado a partir de campanhas publicitárias nacionais para o cadastramento de gêmeos, idênticos ou não-idênticos, que desejassem participar de pesquisas sobre a influência da genética sobre a saúde e a personalidade humana.
Estudar as semelhanças e diferenças exibidas por gêmeos idênticos é a maneira preferida pelos geneticistas para investigar quanto de nossas vidas é definido pelos genes, pelo ambiente, e pela experiência de vida, já que essas pessoas têm todos os genes em comum. E, embora gêmeos não-idênticos sejam tão parecidos quanto qualquer casal de irmãos, eles constituem um grupo ideal para comparação, já que dividiram o mesmo útero durante a gestação, e após o nascimento costumam compartilhar o mesmo ambiente, ao menos durante a infância.
A tarefa das gêmeas era simples: ouvir trechos de 26 melodias populares como Noite Feliz, o Hino Nacional Americano, Oh! Susanna, e dizer se cada melodia lhes parecia correta ou não - sendo que 17 das melodias continham notas desafinadas. Trata-se, na verdade, de um teste de discriminação de intervalos entre notas. Os desafinados introduzidos nas músicas reproduzem erros comuns de cantores pouco habilidosos: trocar notas, modificando um dos intervalos da música, ou simplesmente mudar de tom no meio da musica. O resultado é que a melodia continua identificável, mas subitamente as notas se tornam um pouco mais agudas ou mais graves do que deveriam. Oh! Susanna, por exemplo, de dó-ré-mi..sol..-sol......-lá-sol..-mi..-dó....-ré-mi..-mi..-ré..-dó..- ré..... passa a ser dó-ré-mi..-fá#..-sol....-lá-sol..-mi..-dó....-ré-fá..-fá..-ré..-dó..-r é.... - e algumas pessoas não ouvirão a diferença.
A questão era quantas pessoas não ouviriam a diferença, e se gêmeas idênticas seriam mais parecidas do que as não-idênticas nas suas habilidades, o que seria uma evidência a favor da identificação de tons musicais ser determinada geneticamente. Cada gêmea recebeu uma "nota" correspondente ao número de melodias identificadas corretamente como distorcidas ou não - e de fato, gêmeas idênticas obtiveram notas mais parecidas do que gêmeas não-idênticas: uma correlação de 0.67 entre gêmeas idênticas numa escala de 0 a 1, contra 0.44 entre as não-idênticas.
Aplicando modelos matemáticos sobre os resultados para avaliar a contribuição de fatores genéticos e ambientais, os pesquisadores observaram que o modelo que melhor explicava a variação da habilidade de identificar os intervalos era uma combinação de 20 a 30% de experiência de vida diferenciada entre as gêmeas - provavelemente com relação à música-, e 70 a 80% de determinação genética - uma "herdabilidade" tão elevada quanto a de características como a altura.
Mais impressionante é que, usando os critérios do estudo de 1980, que consideravam "surdez musical" um número de acertos igual ou menor do que 23 músicas das 26 do teste, desta vez quatro em cada dez gêmeas cairiam nessa categoria. Se parece um número muito alto, pense no outro lado: seis em cada dez pessoas acertam quase todas as vezes, o que seria o equivalente a "ter um ouvido musical", sendo que ao menos duas dessas seis pessoas em dez são capazes de detectar todas as melodias distorcidas.
O problema não é auditivo: testes de audiometria, que medem o funcionamento dos ouvidos, mostraram que a dificuldade em detectar distorções nas melodias não era acompanhada por dificuldades de audição..
Independentemente do critério escolhido, fato é que o grau de habilidade para detectar intervalos musicais corretos parece ser altamente variável na população, sendo quase nula em 5% da população, e pelo jeito uns 80% dessa variabilidade são determinados pelos genes recebidos dos pais.
Certamente a "surdez musical" severa tem implicações para a música - como a incapacidade de afinar um violão de ouvido, sem apelar para um aparelhinho, ou de cantar uma música até o fim sem tropeçar. Mas as implicações para a fala podem ser ainda mais graves: a musicalidade da voz, ou seja, a entonação, carrega informações cruciais sobre a carga emocional da linguagem, e talvez esses mesmos 5 a 40% da população tenham problemas de comunicação relacionados à percepção da música da fala.
Se por um lado esses problemas são fortemente herdados, por outro, mesmo recebendo genes desfavoráveis ainda deve dar para melhorar treinando o cérebro, como o estudo sugere. Mais uma boa razão para ouvir música...
Fonte: http://www.cerebronosso.bio.br/paginas/musica.html
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