yield Veterano |
# out/12
Como prometido, segue um prefácio da minha produção acadêmica.
pelo bem de todos seres
A ÉTICA DA COMPAIXÃO PELA TRAGÉDIA COMPARTILHADA - BUDISMO E SCHOPENHAUER
No livro I da República, Platão levanta a questão de que se caso pudéssemos ser invisíveis, o que nos impediria de fazer o que bem entendêssemos? Qualquer possível retaliação às injustiças que cometêssemos seria impossível e todo objeto que desejássemos estaria ao nosso alcance, independente de pertencer a outro. Para Trasímaco, um dos personagens desse diálogo, a vontade de todos frente a tal situação seria tomar para si o que não lhe cabe por direito legítimo e afirma a partir disso que aqueles que criticam a injustiça, não o fazem por receio de praticá-la, mas apenas por temerem sofrê-la. Os argumentos utilizados por Platão para negar essa afirmação e estabelecer a justiça como um bem em si são muitos e aqui não serão apresentados. Responderemos a pergunta por outro caminho, tendo como referência os ensinamentos de Buda e a filosofia de Arthur Schopenhauer. A base da ética schopenhauriana é a mesma apresentada no Budismo, ou seja, a compaixão. Ambos os sistemas filosóficos estabelecem a justiça como um bem em si a partir desse fundamento e justificam o comportamento compassivo também de modo semelhante. Para os budistas a compaixão é o resultado natural do entendimento correto da existência, fruto do insight que elimina a dualidade entre sujeito e objeto e reconhece a natureza última da realidade, chamada de shunyata, ou vazio. “Vazio é forma e forma é vazio”, diz um dos principais ensinamentos de Buda. Nada possui origem isolada ou uma entidade fixa que se possa reconhecer como de fato sendo o objeto. Todos os fenômenos são interdependentes e estão em constante mudança, sendo a existência nesse mundo, como o próprio Platão também afirma, “um eterno tornar-se sem jamais ser”, resultado de infinitas possibilidades combinadas e recombinadas sob a lei da causalidade. No caso da simples matéria, a confirmação desse fato é bastante evidente. Todo objeto só existe sob determinado aspecto durante certo período de tempo, não importa a substância de que seja constituído. Tudo se desintegra, mas nada desaparece, e de acordo com as forças da natureza que atuam sobre a matéria, ela volta a ser reordenada em um processo que se repete ciclicamente. Em relação aos seres vivos - especificamente à essência que move os seres vivos, já que o corpo obviamente segue o mesmo destino do restante dos objetos – a percepção dessa ausência de entidade exige maior esforço, sendo a própria mente do ser que possibilita a matéria de se apresentar sob infinitas formas. Para os budistas, você não é a personalidade criada ao redor do ego e que se reconhece como indivíduo, também não é suas memórias, habilidades ou esperanças. Na verdade “você” não pode ser definido nem encontrado em lugar algum e a nossa habitual noção de “eu” é uma ilusão. A personalidade egóica se forma a partir da união de causas e efeitos, condicionamentos e experiências também em constante transformação e cuja natureza última é o vazio, shunyata. É possível percebê-la em parte ao suspender o fluxo contínuo de pensamentos discursivos auto-infligidos, ao esquecer apegos e desejos, os quais o Budismo reconhece como causa de todo sofrimento, de um contínuo estado de insatisfação (Dukkha), mantido por razões diversas que sempre se originam a partir desses fatores e se manifestam principalmente sob quatro formas: a falta de algo que despertou o nosso desejo; o medo de perder aquilo que conseguimos; porque temos algo que parecia muito bom, mas agora não é tanto; porque temos algo que queremos nos livrar e não conseguimos. Ao libertar a mente do apego a esses fenômenos impermantentes, abre-se espaço à simples presença meditativa não conceitual e assim a existência cíclica de nascimento e morte, chamada pelos budistas de Samsara , releva-se então como um jogo de espelhos em que um indivíduo reflete no outro a mesma e única natureza presente em todos os seres, em si vazia e livre, porém obstruída por toda espécie de sofrimentos instalados na mente pela ilusão do ego. Estabelecida no momento presente, em uma condição além dos desejos e esperanças, a mente experimenta a percepção de uma instantaneidade primordial que ultrapassa qualquer possibilidade de racionalização, encontra uma fonte eterna de paz e felicidade. É o estado de pureza mencionado no texto clássico Dhammapada, atribuído ao próprio Buda, que afirma que “todas as coisas têm como precursoras a mente, são feitas de mente, se um homem fala ou age com mente pura, em consequência felicidade o segue, como a sombra que jamais dele se despede”. Nesse estado a possibilidade de sofrimento é extinta e o conhecimento surge espontaneamente, assim como a compaixão ilimitada e a empatia absoluta. A mente abarca todos os fenômenos como sendo parte integrante de si mesma e não se apega a nenhum deles, reconhecendo a vacuidade e a impermanência em todos. O intelecto então não dita mais as ações, não julga nem procura por objetos exteriores e fantasias, não aprisiona o ser nos limites do ego. Todo ato passa a ser causa e efeito em si mesmo, o karma chega ao fim. Buda ensina que para alcançar esse estado de iluminação é necessário compreender a real natureza da existência, realizar a vacuidade, assim como eliminar os sentimentos negativos e os desejos. Desse modo, não prejudicar os outros se torna fundamental e uma espécie de termômetro para a prática da vida budista, sendo que toda ação que vise apenas ao próprio bem-estar sem considerar o do próximo revela o apego às ilusões e a contínua possibilidade do sofrimento. Por outro lado, ações movidas por compaixão fornecem um acumulo de méritos necessários para se alcançar o estado iluminado e à medida que se avança nas práticas, colhem-se os frutos dos atos virtuosos. Assim os budistas encontram um fundamento para ações morais necessariamente justas, quando próximos da iluminação, de modo totalmente empírico, e se distantes, por acreditar ser esse o comportamento que conduz a budeidade. Já para trilharmos o caminho proposto por Schopenhauer na sua ética baseada na compaixão, é necessário antes compreender as distinções realizadas pelo filósofo entre o fenômeno e a coisa-em-si, temas da filosofia kantiana, de onde Schopenahauer parte nas suas investigações. A essa essência do mundo, chamada por Kant de coisa-em-si, que seria incognoscível ao ser humano por fugir às formas puras da sensibilidade, o espaço e o tempo, Schopenhauer dá o nome de Vontade, algo que se objetiva sem cessar e tem no mundo fenomênico a sua representação. O filosofo propõe uma profunda síntese entre sujeito e objeto, um não existindo sem o outro, toda realidade, portanto, inseparável dos mecanismos de apreensão do sujeito. Desse modo afirma que “não se pode conhecer nem um sol, nenhuma terra; mas apenas olhos que veem este sol, mãos que tocam esta terra; (...), o mundo ao redor existe apenas como representação, na relação com um ser que percebe.” Porém ao contrário de Kant, Schopenhauer acredita que a essência do mundo também pode ser conhecida pelo sujeito através das ações do próprio corpo. No mundo como representação, o corpo é o objeto imediato da vontade, que no ser humano alcança seu grau mais elevado e esta lhe fornece a chave da compreensão de seus movimentos, mostrando-lhe a engrenagem interior de seu ser, assim como a de todo o universo. "(...) quem, ia dizer, alcançou esta convicção [da Vontade como núcleo da consciência humana] obterá comigo uma chave para o conhecimento da essência mais íntima de toda a natureza (...) Reconhecerá a mesma vontade como essência mais íntima não apenas dos fenômenos inteiramente semelhantes ao seu, ou seja, homens e animais, porém, a reflexão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na planta, sim, a força que forma o cristal, que gira a agulha magnética para o polo norte, que irrompe do choque de dois metais heterogêneos(...) sim, tudo isso é diferente apenas no fenômeno, mas conforme sua essência em si é para se reconhecer como aquilo conhecido imediatamente de maneira tão íntima e melhor que qualquer outra coisa e que, ali onde aparece de modo mais nítido, chama-se vontade" Sendo a Vontade a realidade metafísica imanente em tudo o que existe, algo, portanto, uno, que escapa às condições de tempo e espaço – categorias, por sua vez, essenciais ao conhecimento de qualquer objeto externo e que se apresentam a priori na intuição do sujeito, esse mundo dos fenômenos se revela a nós como uma espécie de ilusão, o “véu de Maya”, citado por Schopenhauer diversas vezes em referência às alegorias da filosofia oriental. A pluralidade do que é um e mesmo se dá pelo que o filósofo chamou “princípio de individuação”, mas em cada fenômeno representado nesse processo a Vontade permanece inteira, vendo em torno de si “a imagem inúmeras vezes repetida de sua própria essência”. É esse equívoco oriundo da dicotomia entre a realidade una da coisa-em-si e o modo como os fenômenos se apresentam que nos distancia do outro para afirmar uma individualidade apenas circunstancial, escravizada pela Vontade e iludida pelo ego. Porém o mais trágico da afirmação consiste na gratuidade absoluta de todos os esforços feitos para satisfazer algo por natureza insaciável. "Qualquer alegria excessiva (exultatio, insolens laetitia) deriva sempre da ilusão que nos faz crer que encontramos, na vida, algo que nunca se encontra, ou seja a satisfação durável dos desejos, ou a calma definitiva das inquietações que nos torturam e que se renovam sem trégua. Qualquer ilusão deste gênero nos será tolhida infalivelmente mais tarde e então lhe pagamos a perda com tanta dor, quanta fora a alegria que nos dera." A vida desse modo se apresenta como uma tarefa a ser cumprida, garantir o suprimento de matéria necessária para o corpo continuar a existir enquanto fenômeno da Vontade. Por isso o bem-estar do indivíduo nada significa e a miséria se manifesta sob tantas formas, sendo a única preocupação real da Vontade a perpetuação da espécie, garantida pelo impulso sexual. Para esse processo Schopenahauer oferece uma imagem assaz perturbadora, inspirado nas ideias platônicas. "É verdade que a forma do corpo dura por um tempo, mas apenas sob a condição de que a matéria esteja sempre mudando, de que a velha matéria seja descartada e uma nova seja incorporada. É o principal empenho de todas as formas viventes assegurar um constante suprimento de matéria aproveitável. Ao mesmo tempo, estão conscientes de que sua existência é modelada de modo a durar apenas um período de tempo, como foi dito. Por essa razão tentam, quando estão abandonando a vida, deixá-la para outrem que tomará seu lugar. Essa tentativa toma a forma do instinto sexual em autoconsciência, e na consciência de outras coisas apresenta-se objetivamente — isto é, na forma do instinto genital. Esse instinto pode ser comparado ao enfileiramento de uma corrente de pérolas; um indivíduo sucedendo o outro tão rapidamente como as pérolas na corrente. Se nós, em imaginação, acelerarmos essa sucessão, veremos que a matéria está mudando constantemente em toda a fileira assim como está mudando em cada pérola, enquanto retém a mesma forma: percebemos então que temos apenas uma quasi-existência. Que são somente as Ideias que existem e criaturas-sombra daquilo que lhes corresponde" Schopenahauer parece tentar, em boa parte de seus escritos, convencer de que a vida não vale o esforço. Algumas passagens revelam inclusive um certo humor, ao estilo “cômico se não fosse trágico”, de um pessimismo elevado ao absurdo, como um caminho para o ser que só ao atingir seu mais profundo abismo pode arrancar completamente as raízes do seu sofrimento. Em Parerga e Paralipomena, encontram-se algumas de suas mais enfáticas manifestações de desprezo pelo conjunto da vida, seguem alguns exemplos: "É de enlouquecer a contemplação dos esforços exagerados, das inumeráveis chamejantes estrelas fixas no espaço infinito, com nenhuma outra obrigação a não ser iluminar mundos que são palco da necessidade e da miséria e que no melhor caso nada oferecem senão tédio; ao menos a crer no corpo de prova a nós conhecido. Ninguém é mui invejável, mui deploráveis são muitos. A vida constitui uma tarefa a ser realizada: neste sentido defunctuns é uma bela expressão. Quando dois amigos de infância, apos a separação de toda uma geração vivida, se encontram como anciães, a impressão predominante que sua própria visão estimula reciprocamente, porque a ela se prende a lembrança de tempos passados, é de todo o desapontamento sobre o conjunto da vida, tão promissora na rósea luz matinal da juventude, e que tão pouco se cumpriu. Esta impressão domina tão decididamente o seu reencontro, que nem consideram exprimi-la em palavras, mas pressupondo-a reciprocamente, prosseguem a falar tendo-a por base" Ao reconhecer essa natureza trágica da existência, Schopenhauer propõe a negação da vontade, que em um primeiro momento assume a forma de compaixão. Isso ocorre pela análise de seu oposto, o egoísmo, que representa um grau mais elevado da ilusão causada pelo princípio de individuação. A injustiça derivada do egoísmo, afirma o filósofo, nada mais é que a negação da vontade que se manifesta em um indivíduo, imposta por outro. “A vontade de um foge aos limites em que se afirma a vontade do outro, seja ofendendo ou destruindo o corpo deste, seja constrangendo as forças de tal corpo a servi-la em lugar de servir o corpo em que se manifesta”. Causar sofrimento ao outro pode representar um prazer em si, chamado por Schopenhauer de "alegria maligna", ou visar a satisfação de um desejo próprio qualquer. Ambas são afirmações da violência com que a Vontade aflige o indivíduo e de como este enxerga nos outros apenas meios para atingir seus objetivos, que ao serem finalmente alcançados nada mais significam. Por outro lado, com a distancia entre o eu e o outro reduzida - ou eliminada, no caso de uma vitória completa frente à ilusão de ótica reconhecida no princípio de individuação - o sofrimento do outro passa a ser o próprio sofrimento, assim como o seu bem-estar. Porém em Schopenhauer, o bem-estar só pode de fato ser mantido pela mortificação absoluta da vontade, sendo a compaixão uma espécie de paliativo, que reduz as dores impostas pela inalcansável satisfação plena dos desejos egoístas, ao nos proporcionar a experiência de unidade com outros seres e diluição do ego. Com isso o indivíduo aproxima-se de um estado de "boa consciência", uma satisfação oposta diretamente ao peso que recai sobre o ser que pratica a injustiça. As semelhanças com o Budismo nesse ponto já são muitas. Em ambos a compaixão representa a ação natural do indivíduo que não mais se reconhece apenas como tal e também tanto na visão budista quanto schopenhauriana, o estado final, o apogeu de toda prática, dá-se pela negação absoluta do querer, a extinção completa dos impulsos da vontade. Do mesmo modo, esse resultado obtido pode ser considerado praticamente o mesmo, ainda que tal estado não possa ser expresso com palavras em nenhum dos casos, mas apenas colhido como fruto da própria experiência, como afirma Schopenahauer ao citar exemplos de biografias de homens considerados santos, em especial São Francisco de Assis, que assim como o príncipe Sidarta Gautama, fundador do budismo, renunciou a todos os bens materiais para se dedicar à realização espiritual, e dizer que "podemos ver o homem que atingiu a negação do querer-viver, por quanto pobre e triste, por quanto cheia de privações lhe seja a sorte, julgada pela aparência, gozar da mais pura beatitude interna, numa calma verdadeiramente celestial. Não há nele nem a satisfação agitada que traz a atividade vital, nem os transportes de alegria de que a cessação duma dor é sempre a condição preliminar, ou de que uma dor futura é sempre o resultado necessário, coisas que constituem a existência do homem ávido de viver; não! há uma calma inalterável, uma paz profunda e uma sere nidade íntima. Há um estado que não podemos contemplar sem inveja quando se apresenta à nossa vista ou à nossa imaginação, porquanto sentimos logo que tal condição está por tudo acima do mundo e que nela se contém a verdade" Expostas intersecções tão evidentes, as áreas que diferem entre as doutrinas parecem detalhes um tanto menores, concentrados nas práticas ou discussões metafísicas nas quais as próprias escolas budistas também assumem posições distintas. No campo da ética e da justiça, temas do presente estudo, pode-se afirmar que Schopenhauer e Buda concluíram a mesma coisa, por caminhos semelhantes e a partir disso propuseram a mesma inversão total do modo como a razão humana é utilizada. Seu sofisticado aparato de ferramentas lógicas, abstrações e conceitos, ao deixar de servir a Vontade, de buscar eternamente novos meios de satisfazê-la, para, ao invés disso, dedicar-se à investigação da própria natureza do ser que deseja, revelaram, nas palavras de Schopenhauer, um “pêndulo que oscila entre o sofrimento e o tédio”, nas de Buda, que toda existência é sofrimento. Não deixa de ser irônico que essa revolta contra a Vontade só possa ter se desenvolvido justamente em função do aumento da capacidade do intelecto - já presente nos animais - de arquitetar métodos para mais prontamente atendê-la, função da qual o homem sempre se ocupou com grande maestria, desde que desceu das árvores e desenvolveu polegares articulados. Poderia ter-se contentado com a ignorância completa dos animais e seu natural estado presente de espírito, incapazes que são de desvendar complexas causalidades e obter com isso toda espécie de remorso ou projetar suas esperanças no futuro a ser frustrado pelo tempo. Mas agora como um Frankeinstein que se rebela contra seu criador, o fenômeno volta suas armas na direção da coisa-em-si. Caso vença a batalha, o prêmio é a resposta à pergunta que mais lhe consome, o sentido da vida, o fruto proibido à metafísica enquanto ciência e que todos os religiosos e místicos afirmam poder ser encontrado apenas dentro de si. Para Schopenhauer e Buda esse sentido descoberto tem valor negativo e a vida, como a conhecemos em Samsara, nasce de um erro que não deveria ter sido cometido. Porém agora é tarde, a Vontade não pode querer para trás, eis sua mais solitária aflição. O homem precisa ser superado.
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