BokuWa Veterano |
# abr/07
Vítimas do conhecimento que acumulam,
pesquisadores são perseguidos no Brasil
e no exterioR, enfrentando uma guerra
contra seus direitos individuais
Por Júlio Wiziack
Única brasileira a receber o prêmio Manuel Velasco-Suarez, a mais alta honraria concedida pela Organização Panamericana de Saúde (Opas), a antropóloga Débora Diniz nem teve tempo para comemorações. Foi demitida da Universidade Católica de Brasília, onde lecionava, no mesmo dia em que colocou a mão no troféu concedido por seu trabalho na área de medicina fetal. O episódio, ocorrido há cinco anos, ganhou repercussão internacional, especialmente depois que a Pró-Vida, uma organização ligada à Igreja Católica, começou uma campanha contra a pesquisadora, a quem chamava de “a abortista”. Desde então, Débora teve de trocar quatro vezes o número de seu telefone e perdeu a conta das ameaças que recebeu (uma delas foi de morte). Depois de anos exigindo retratações, a especialista chegou no início deste ano à mais alta instância do Judiciário. Sua ação por danos morais corre no Supremo Tribunal Federal (STF). A justificativa: o desrespeito à liberdade de cátedra.
Criada na Alemanha por volta de 1830, a cátedra é um sistema que garante a um professor universitário autonomia de pesquisa, independentemente do local onde trabalha. Na prática, isso significa que ele não pode ser demitido nem pressionado para mudar sua linha de estudo. “A idéia é preservar a produção do conhecimento, livrando a ciência dos conflitos de interesse”, diz Flávio Edler, presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC).
No Brasil, os problemas começaram a surgir em universidades particulares, principalmente as confessionais – nome dado às instituições ligadas a grupos religiosos. Nesses centros são grandes as chances de censura sempre que os dogmas seculares entram em xeque. Foi o que aconteceu com Débora Diniz, cujos estudos comprovaram os benefícios do aborto para as mulheres em casos de má-formação fetal. Consultada por ISTOÉ, a reitoria da Universidade Católica de Brasília não se pronunciou até o fechamento da edição.
Mas esse silêncio tem prazo de validade. A ação que chegou ao STF promete abrir uma discussão pioneira. Afinal, universidades e centros de pesquisa confessionais recebem boa parte dos recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para se ter uma idéia, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul recebem juntas 4% das verbas liberadas pelo CNPq. É mais do que ganham a Universidade Federal da Paraíba, a Universidade Federal de Goiás, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, núcleos fundamentais para o desenvolvimento do Norte e do Nordeste.
Evidentemente, a solução não é a limitação das verbas para os núcleos religiosos de pesquisa. O crucial é garantir que eles mantenham seus preceitos bem longe dos laboratórios. Além disso, quem decide pagar por um curso universitário nessas escolas está em busca de conhecimento científico, puro e simples. É o que mostra um levantamento da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais segundo o qual menos de 2% dos universitários escolheram a instituição levando em conta a orientação religiosa.
A violação da liberdade científica também ocorre em universidades e agências de pesquisa públicas. Chefe do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) do Hospital das Clínicas de São Paulo, o infectologista Anthony Wong fez um alerta recente aos riscos oferecidos pelos remédios contra dor de cabeça, como o Tylenol. Para ele, o excesso do medicamento aumenta as chances de falência do fígado, podendo levar à morte. Segundo o hospital, o laboratório Aché encaminhou uma carta sugerindo a censura ao especialista devido ao tom alarmista de suas declarações. Wong, cujo trabalho é reconhecido internacionalmente, foi submetido a uma investigação, mas o rigor de seus estudos falou mais alto: “Minhas opiniões foram comprovadas cientificamente por meus colegas.”
Na Universidade de São Paulo (USP), o farmacologista Gilberto De Nucci comprou briga ao afirmar que pelo menos 80% dos remédios em circulação são ineficazes: “Eles servem para alguma coisa, mas não exatamente ao que se propõem.” Pioneiro na bioequivalência, área que realiza testes de eficiência dos genéricos antes de chegarem às farmácias, De Nucci teve um de seus laboratórios fechado no final do ano passado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Segundo os laudos oficiais a que ISTOÉ teve acesso, normas para a compra de medicamentos não foram seguidas. Mas no centro desse imbróglio residem conflitos de interesse entre a USP, que abrigava o laboratório, empresas farmacêuticas, a Anvisa e o próprio De Nucci.
Em Mato Grosso do Sul, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente encomendou a um grupo de especialistas da Universidade Federal e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) a análise do relatório de impacto ambiental da siderúrgica EBX, que está sendo instalada pelo empresário Eike Batista em Corumbá. Coordenados pela bióloga Débora Calheiros, os peritos descobriram, em meados de 2006, que o empreendimento, da forma prevista originalmente, causaria acúmulo de mercúrio, um metal pesado e cancerígeno. No dia da audiência pública marcada para a discussão do projeto, uma rádio de Corumbá pediu que os moradores espantassem os ambientalistas à bala. O caso foi parar na Justiça. “Voltamos à era das perseguições inquisitórias”, diz Débora.
Existem ainda os cientistas que trabalham monitorados em tempo integral porque lidam com áreas estratégicas. No final de 2005, um especialista da Embrapa, que aceitou conversar com ISTOÉ sob condição de sigilo, foi chamado ao Gabinete de Segurança Institucional, em Brasília. Lá, entregaram-lhe uma pasta confidencial contendo uma investigação sobre sua vida pessoal e profissional. “Disseram que poderiam ajudar ou atrapalhar minhas pesquisas”, diz. “Fiquei constrangido.” Hoje ele trabalha para os militares e não pode dar detalhes do projeto do aeromodelo pilotado via satélite que escapa de radares.
Atual presidente da Eletronuclear, o almirante reformado Othon Luiz Pinheiro da Silva foi o engenheiro que projetou a centrífuga brasileira de enriquecimento de urânio nos anos 80. Seu maior segredo, ainda mantido sob sete chaves, reside numa tecnologia que usa um campo magnético para fazer as engrenagens da máquina girarem sem atrito, resultando numa economia de energia. Em 1994, ele teve seu telefone residencial grampeado e o apartamento bisbilhotado por um espião americano que se mudou para o prédio onde o engenheiro morava. “Isso quase causou um incidente diplomático”, diz. Por isso, Othon passou a adotar a política do isolamento: “Só falo de trabalho com meus funcionários.” Essa também é a estratégia de Cláudio Rodrigues, diretor do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). Para profissionais como esses, a pena por vazar segredos científicos é a prisão.
Nos EUA, a pressão do Estado toma conta dos laboratórios desde julho de 2006, quando o presidente George W. Bush determinou que todos os estudos fossem revisados antes da publicação. Um levantamento feito pela Union of Concerned Scientists (UCS) mostrou que a política do “cala a boca” já afeta oito das agências que fazem estudos ambientais e outras cinco da área de saúde. No FDA, órgão responsável pela liberação de medicamentos, 18,4% dos cientistas afirmaram ter feito “correções” em suas pesquisas. No Congresso americano, os deputados tentam aprovar uma legislação que restabeleça a integridade científica. No Brasil, a comunidade acadêmica ainda aguarda uma lei que acabe de vez com essa pressão
http://www.terra.com.br/cgi-bin/index_frame/istoe/1946/ciencia/1946_ci encia_sobre_pressao.htm
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