Crônica "Pianos Mudos"

    Autor Mensagem
    J. S. Coltrane
    Veterano
    # fev/08


    Seguindo o exemplo do J. Vandrake, vou postar uma crônica que está no meu blog.

    Me lembro quando eu tinha uns 16 anos, meu pai comprou um piano para minha irmã. Ele vendeu um terreno, sobrou uma grana e ele decidiu investir. Agradeço a ele por isso. Minha irmã tinha aulas com a minha avó, meio aquela coisa de família, que não teve muito futuro (e não teve mesmo, ela parou de tocar). Então ficamos com aquele móvel na sala. Na época eu curtia música, fazia aula de violão mas não me interessava pelo piano. Até que um dia eu perdi o medo e sentei na banqueta, arriscando alguns acordes, tentando passar aquilo que eu aprendi no violão para aquele imenso instrumento. Me apaixonei. Tocava alguns rocks, baladas, jazz. Pratiquei bastante. Quando mostrei para o meu professor de violão, ele ficou espantado e perguntou como eu aprendi aquilo. Ele se mostrou mais surpreso quando eu disse que, de certa forma, fora ele.
    Pensando um pouco, estudando a história do instrumento cheguei a conclusões totalmente contrárias ao senso comum (isso parece ser uma constante, afinal sabemos que "O senso comum é a falta de senso da alienação comum"; e se o leitor souber o autor dessa frase, por favor me diga). O primeiro mito desfeito por mim é de que se trata de um instrumento difícil, erudito. Primeiro que não existem instrumentos eruditos, mas músicos eruditos. Claro que o repertório de piano erudito é imenso, que ele teve uma larga utilização e se consagrou dessa forma, mas isso não é tudo. Segundo que não existe instrumento fácil, o único que eu conheço chama-se aparelho de som. A arte de tocar um instrumento é também uma ciência, que exige uma determinação. Diferente da mercadoria, que de um modo imperialista se alastra pela sociedade e tende "a tornar todo lugar igual ao outro", a cultura pressupõe conhecimento, esforço. Nesse sentido nenhum instrumento é fácil, e eles não podem ser classificados assim. Alguns dizem que música é como mulher: não existe mulher difícil, existe mulher mal cantada.
    O piano é um instrumento burguês. Os outros já existiam antes do início da aventura burguesa. claro que o teclado vem do orgão, mas diferente desse, trata-se de um instrumento de cordas. A alma de um piano consiste em uma chapa de ferro fundido que segura as cordas com uma tensão de várias toneladas, produzindo um som muito intenso para uma força pequena. Trata-se, de certa forma, de uma máquina que só poderia ser construída depois da revolução industrial. O piano se alastrou por ser uma forma de entreter as pessoas, mesmo porque não havia luz elétrica e ainda não tinhamos experimentado a grande inundação de imperialismo radiofônico que vemos hoje. A música está em todo o lugar, as pessoas querem ouvi-la o tempo todo. No carro, no elevador, no restaurante, todos os lugares TÊM que ter música. Isso gera tanto estímulo que eu sinto que a música em certos momentos chega a virar ruído. Deixa de ser uma experiência sagrada (como estava e ainda está ligada à religião) para se converter em algo banal.
    Enquanto eu continuo o meu esforço para aprender a tocar, 'messing around the keys', cantando junto, me dou conta do seguinte: o piano é o instrumento mais fácil (para quem é músico, claro). As notas estão prontas, são visíveis e são tocadas como um máquina de escrever. Acho que qualquer um que viva no massacre do cotidiano sabe o que é apertar um botão. Para quem tem alguma formação em música, é muito fácil montar acordes, achar escalas e tocar algo simples. Com um mínimo de prática um violinista arrisca algo no piano. O contrário não é verdadeiro. Qualquer outro instrumento requer uma habilidade específica. Até achar a nota em um violino, até fazer uma pestana no violão pode-se correr algum tempo. Um professor meu já dizia: 'a cultura dói'. No caso de instrumentos musicais essa dor é também física.
    Acho que chegou a hora de explicar o título acima. O que ocorre hoje é um abandono desse instrumento devido ao que os situacionistas chamavam de 'proletarização do mundo'. O mundo virou uma imensa fábrica, aonde a rua se torna 'máquinas de tráfego' (como queria Le Corbusier) e a cultura de massa burra se espalhou por tudo. Assim, pouco a pouco os pianos vão sumindo, pois não há mais pessoas para tocá-los. Algo que era extremamente difundido se torna difícil, erudito, pois qualquer gesto maior que ligar a Tv com o controle remoto causa repulsa às pessoas. Notem que eu falo aqui de pessoas que têm condições, trago essa carga negativa sem nem ter entrado no problema da pobreza. Se vemos tamanha miséria de espírito nos filhos da burguesia só podemos esperar que os seus bastardos nos redimam.

    Mais em www.dezmilplatos.blogspot.com

    Blackus
    Veterano
    # fev/08
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    As notas estão prontas, são visíveis e são tocadas como um máquina de escrever.
    Sempre pensei assim também, pra compor, transpor idéias para o papel e estudar, um piano ou teclado é sempre a melhor coisa, pois as notas estão ali na sua cara, você não só ouve a nota como vê a nota.

    fernando tecladista
    Veterano
    # fev/08
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    Segundo que não existe instrumento fácil, o único que eu conheço chama-se aparelho de som
    Djs discordam

    são tocadas como um máquina de escrever
    Pianistas discordam

    J. S. Coltrane
    Veterano
    # mar/08
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    Up

    Consenso só existe no reino de Deus.

    Master Bass
    Veterano
    # mar/08
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