ricardodelima
Veterano |
# jun/05
O primeiro músico que se destacou no país como solista de violão foi Américo Jacomino (1889-1928). Canhoto, como era mais conhecido, dedilhava o violão com a mão esquerda, enquanto preparava as notas e os acordes com a direita. Além disso – o que era mais surpreendente –, por não inverter a ordem de colocação das cordas no instrumento, Canhoto, ao contrário dos demais executantes, utilizava os dedos polegar, indicador e médio para tocar as chamadas cordas primas – aquelas que produzem os sons mais agudos –, enquanto com o anular tocava os bordões; responsáveis pelos sons mais graves.
Canhoto nasceu e viveu em São Paulo: apesar da sua carreira relativamente curta, granjeou fama como intérprete e compositor, alcançando a imortalidade na condição de autor da mais famosa valsa escrita para o instrumento entre nós: Abismo de rosas.
Canhoto e Mozart Bicalho nunca chegaram a se encontrar e, após a morte do primeiro, ocorrida em 1928, o então diretor artístico da Odeon, Eduardo Souto – autor do mais elegante dos tangos brasileiros: O despertar da montanha –, convidou Mozart para integrar o elenco de artistas daquela gravadora.
Recorde-se, por oportuno, que as gravadoras, cronologicamente, apareceram antes do rádio: em seus primórdios, tanto o gramofone, precursor da vitrola, quanto os sistemas utilizados nas gravações eram baseados em processos mecânicos e, como tal, não necessitavam de energia elétrica para funcionar. Tais circunstâncias, ao modo delas, acabaram contribuindo para uma das alegrias confessadas de Mozart Bicalho:
– Canhoto, o grande Canhoto, a quem sucedi na Odeon, foi o primeiro violonista a gravar no país e eu o primeiro a tocar em rádio. Enquanto Canhoto tornou-se pioneiro do disco com Abismo de rosas, coube a mim inaugurar o rádio com Gotas de lágrimas.
Em 1929, sucedendo a Canhoto e então acompanhado ao piano pelo maestro Henrique Vogeler, Mozart Bicalho gravaria seu primeiro disco, contendo, em um dos lados, uma valsa de nome Alma de artista e, no outro, o cateretê mineiro Tuim Tuim.
Henrique Vogeler, a propósito, conforme relata José Ramos Tinhorão em sua Pequena história da música popular, é autor do primeiro samba-canção composto no Brasil: o antológico Ai, Ioiô, que é de 1928.
AMIZADES CARIOCAS
No período em que viveu no Rio de Janeiro, Mozart Bicalho conviveu com outros violonistas que também marcaram época no país:
– Muitos profissionais – recorda ele – se destacavam no meio artístico atuando como acompanhantes, mas apenas Canhoto e eu éramos conhecidos como solistas. O Catulo da Paixão Cearense, por exemplo, foi meu companheiro na Rádio Sociedade e lá ele fazia um programa acompanhado pelo João Pernambuco. Ambos eram muito meus amigos. O João Pernambuco, uma excelente pessoa; um tipo muito alto, assim meio bonachão. Encontrávamo-nos sempre no Ao bandolim de ouro, que era uma loja muito freqüentada pelo meio artístico. O Catulo, então, nem se fala; uma figura inesquecível: quando fui diretor artístico da Rádio Vera Cruz, ele aparecia lá para cantar e declamar seus poemas. Cheguei a musicar alguns deles, como Morena do meu sertão. Havia ainda o Quincas Laranjeira e o Oswaldo Soares, que eram também violonistas, e o Rogério Guimarães, que me acompanhou no disco em que gravei o choro onomatopaico Piau Piau e Evocação; esta uma valsa sentimental.
A propósito de Rogério Guimarães, Sérgio Cabral, em sua exemplar biografia de Ari Barroso – No tempo de Ari Barroso; Lumiar Editora, 1993 –, transcreve, na página 313, trecho de entrevista concedida em 1954 pelo autor da Aquarela do Brasil ao primeiro número da Revista da música popular. Em tal entrevista, ao responder à pergunta “quais os melhores intérpretes da música popular brasileira”, Ari Barroso aponta Rogério Guimarães como seu violonista preferido.
Natural de Campinas, Rogério Guimarães cedo mudou-se para o Rio de Janeiro e, tal como outro paulista de renome – Américo Jacomino, o Canhoto –, também ele utilizava o encordoamento às avessas, isto é, os bordões para baixo e as primas para cima. Começou a gravar na Odeon, ainda ao tempo do sistema mecânico de gravação; mais tarde transferiu-se para a RCA Victor.
João Pernambuco, por sua vez, figura entre os principais autores brasileiros de música para violão. Suas composições, ao longo dos anos, vêm atraindo grande número de intérpretes e a mais conhecida delas, Sons de carrilhões, é hoje a música brasileira escrita para violão que possui o maior número de gravações.
Boa parte do trabalho de redescoberta e divulgação da sua obra se deve ao violonista Turíbio Santos. Além do próprio Turíbio, dezenas de violonistas gravaram Sons de carrilhões, alcançando maior popularidade a gravação antológica de Dilermando Reis, que é de 1952. No exterior, a relação inclui Pepe Romero (Espanha); Shirocov (Rússia); Liona Boyd (Canadá); Lasuo Abê (Japão) e Celia Linde (EUA).
Homem simples, sequer alfabetizado, João Pernambuco (1883-1947) – cuja musicalidade era alvo da admiração do próprio Villa-Lobos – a certa altura de sua vida queixava-se de ter sido vítima de plágio, por parte de Catulo da Paixão Cearense, quanto à autoria da célebre modinha Luar do sertão. Merece registro o depoimento de Mozart Bicalho sobre esse assunto:
– Existe, até hoje, uma certa polêmica quanto à autoria do Luar do sertão. Há pessoas que afirmam que esta música pertence a João Pernambuco e não a Catulo. Catulo, no entanto, me disse uma vez que o Luar do sertão era uma melodia nortista, mais ou menos pertencente ao domínio folclórico. Daí, penso eu, é possível deduzir que ambos a possuíam guardada em suas memórias, sendo, portanto, bastante discutível atribuir sua autoria a qualquer um deles.
GOTAS DE LÁGRIMAS
Incorporadas ao eterno da música popular – para utilizarmos uma bela expressão de autoria do jornalista Luís Nassif (extraída de O menino de São Benedito e outras crônicas; Editora Senac, pág. 320) –, existem no Brasil algumas músicas de tal modo identificadas com o violão que, mesmo com o passar dos anos, haverão de estar sempre presentes no repertório de bom número de violonistas, clássicos ou populares. Entre essas, incluem-se Abismo de rosas, de Canhoto; Sons de carrilhões, de João Pernambuco; Magoado ou Se ela perguntar – para citar apenas duas dentre as muitas composições de Dilermando Reis que marcaram época – e, com igual destaque, Gotas de lágrimas.
Para se ter uma idéia da popularidade que esta última alcançou, basta recordar, conforme informa seu autor, que, apenas nos últimos meses de 1930, ano em que foi lançada, Gotas de lágrimas vendeu mais de 3.000 cópias; números que hoje podem parecer inexpressivos mas que, em sua época, se constituíram em recorde absoluto no então nascente mercado fonográfico do país.
Editada, pela primeira vez, em 1963, por uma editora especializada – a Cembra Ltda, da cidade de São Paulo –, sua partitura, nos anos seguintes, ganharia duas reedições; a última delas foi dedicada pelo seu autor ao musicólogo Ronoel Simões. Trinta anos depois, por volta de 1993, Alexandre Piló elaboraria o arranjo publicado neste livro.
Ao início de 2002, atravessando pela primeira vez o oceano, Gotas de lágrimas seria então editada na Itália pelo violonista Marcos Vinicius, passando a fazer parte da Marcos Vinicius Guitar Collection; coleção específica de músicas para violão criada pela Carrara Editions, de Bergamo, a qual, depois da Ricordi, é a mais antiga das editoras italianas. Tal edição, que tem uma de suas páginas reproduzida na capa deste livro, foi dedicada por Marcos Vinicius “to the great brazilian guitarist Dilermando Reis”.
A esta altura, vale a pena conhecer a opinião de alguns violonistas mineiros a respeito de tal música. Violonistas, no caso, representantes da segunda e da terceira geração de intérpretes, a contar dos tempos do seu autor.
Para o professor José Lucena, por exemplo – um dos introdutores da cadeira de violão na UFMG –, Gotas de lágrimas forma com Abismo de rosas e Sons de carrilhões “uma tríade exemplar de músicas populares que, durante anos, atraíram e sensibilizaram os ouvintes a ponto de tornar muitos deles cativos para sempre do instrumento. No meu caso, lembro-me bem ter sido ela uma das músicas que mais me marcaram na década de cinqüenta” – afirma ele.
– “Bela pela simplicidade de suas estruturas e de sua forma” – tal como a considera o também mineiro Marcos Vinícius; representante de outra geração de grandes violonistas, há tempos radicado na Itália.
Ou, na opinião de Juarez Moreira, cuja discografia vem situá-lo em um dos primeiros planos da moderna MPB instrumental:
– “Gotas de Lágrimas, ao lado de outras composições mais conhecidas do repertório clássico-tradicional, é uma prova de que a boa música instrumental haverá de contar sempre com um público fiel ao legado de seus compositores.”
Constituída de três partes e escrita no tom de lá menor – na terceira parte o tom se transfere para seu homônimo maior – o que distingue Gotas de lágrimas das demais valsas brasileiras, conferindo-lhe, em termos musicais, um colorido todo especial, é a presença abundante de suas escalas cromáticas; cromatismo, a propósito, cuja execução requer algum virtuosismo por parte de seus intérpretes.
E não é por outro motivo que o violonista Genésio Nogueira, autor da biografia de Dilermando Reis, registra que, dada as dificuldades técnicas inerentes à sua execução, “Gotas de lágrimas era considerada como música de desafio”. E explica: – “Quem tocasse essa valsa era considerado um bom violonista.”
Fadada a se transformar em verdadeiro clássico do instrumento, tal música, desde cedo, se associou ao gosto do público. Sua letra – que nunca foi gravada – em certos trechos evoca com simplicidade imagens de muito lirismo e delicadeza:
É tão frágil a nossa existência,
nossa vida é qual uma flor,
é um perfume sutil, uma essência fugaz,
qual um sonho de amor.
A tortura e a desventura,
sempre ao lado da desilusão,
fazem a lágrima pura, formada de agrura,
deslizar da face sobre o coração.
Vejamos agora o que tem o seu autor a dizer sobre ela:
– Compus a valsa em 1923, aqui em Belo Horizonte. Inicialmente, escrevi apenas a música; a letra viria mais tarde. Gravei-a, pela primeira vez,
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