Tópico oficial dedicado a ciencia e tecnologia!

    Autor Mensagem
    Saul Morello
    Veterano
    # jan/12


    Falem sobre tudo oque quiserem em relação ao assunto! Da fisica a astronomia,da criação de robos a formação de circuitos programaveis atraves da mente!



    Se matemsse!

    Saul Morello
    Veterano
    # jan/12
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    Que nerd

    The Laughing Madcap
    Veterano
    # jan/12 · Editado por: The Laughing Madcap
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    meros artíficios da burguesia dominadora da técnica pelo seu capital para iludir e anestesiar o homem médio sob a ilusão de se emancipar por meio da tecnologia.

    Heidegger questiona no § 16 de Ser e Tempo o caráter incontornável do ser simplesmente dado no manual. Compreender esse caráter incontornável, por exemplo, do martelo em relação ao martelar, significa compreender o que Heidegger entende por apropriação. O fenômeno da técnica, em sua essência, revela-se como um evento apropriador (Ereignis). À essência desse evento chamamos armação (Gestell). E do que esse evento se apropria? Do próprio tempo e, em correspondência, daquele que responde ou corresponde ao seu apelo: o ser humano. A correspondência a esse apelo se desdobra em várias direções. Em primeiro lugar, corresponder a esse evento significa a confirmação do esquecimento do ser. Esquece-se do ser representando. Ao representarmos não só correspondemos ao apelo, como também confirmamos a questão da verdade do ser como a questão do seu próprio esquecimento. Faz parte da história do ser, portanto, o seu esquecimento e, por esse mesmo motivo, o evento apropriador é uma verdade, é alétheia. A relação entre Ser e Tempo e A questão da técnica é a relação entre o martelar do martelo e o pensar calculador do homem gestéltico, em correspondência ao apelo da técnica. Esta constatação abre novas perspectivas e nos coloca diante de um novo modo de pensar a verdade por correspondência, não no sentido lógico, mas no sentido ontológico. O ser humano corresponde ao apelo, e ao corresponder realiza o evento apropriador que, fenomenologicamente, é uma verdade.

    Heidegger questionou a técnica em pelo menos dois sentidos: a técnica como modus operandi, um modo de fazer humano, como um meio para fins; e a técnica como um modo de pensar: um pensamento calculador, também um meio para uma finalidade. Esse modo de pensar algorítmico ou calculador, se exacerbado, limita ou suplanta o modo de pensar filosófico. Pensar filosoficamente significa não apenas pensar o pensamento que se pensa a si mesmo, mas também o pensamento que questiona as outras coisas, pela crítica e reflexão radicalmente livres.

    A mudança da questão do sentido do ser, em Ser e Tempo, para a questão da verdade do Ser (Seyn) nas Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), indica a mudança de perspectiva do pensamento heideggeriano: "Die Seinsfrage ist die Frage nach der Wahrheit des Seyns" [1]A verdade da técnica é uma verdade como acontecimento, evento. Há perigo, em um primeiro sentido, porque, sendo a verdade do ser exatamente o seu esquecimento, todo o pensar reduz-se ao cálculo. Sem a reflexão filosófica ou outra saída para o pensamento, o ser-aí se converte em representante incontornável do apelo gestéltico.[2]

    O esquecimento do ser, no entanto, é também parte da história do ser, e por isso mesmo é uma verdade. O pensamento representativo calculador expressa esse esquecimento e, ao fazê-lo, não questiona o perigo por trás da desenfreada superprodução. Heidegger faz, portanto, um alerta sobre o perigo inquestionado da técnica, como uma possibilidade não pensada pelos "funcionários da técnica". Há um sentido escatológico ou apocalíptico aqui, mas não como uma profecia sobre o fim do mundo, e sim uma possibilidade não vislumbrada pelo pensamento técnico.

    Ser-aí é ser aberto para as possibilidades de ser e pensar. Possibilidade, como o exposto em Ser e Tempo significa liberdade. Conforme o § 41 deste tratado, o ser do ser-aí ("Cura") é abertura e, por esse motivo, o ser-aí é livre. A liberdade, possibilitada pela angústia, permite a alternância senão intermitência existencial-existenciária.

    É no anteceder-a-si-mesma, enquanto ser para o poder-ser mais próprio, que subsiste a condição ontológico-existencial de possibilidade de ser livre para as possibilidades propriamente existenciárias. O poder-ser é aquilo em virtude de que a presença[3]é sempre tal como ela é faticamente. Na medida, porém, em que este ser para o próprio poder-ser acha-se determinado pela liberdade, a presença também pode relacionar-se involuntariamente com as suas possibilidades, ela pode ser imprópria.

    Ou seja, é porque sou originariamente livre que posso ser livre para, inclusive, a impropriedade, inautenticidade ou decadência. Como estamos lançados no mundo insistimos em existir. No entanto, sem o retorno da queda do impessoal decadente para o âmbito da experiência originária, a reflexão se perde e é esquecida no interior do novo modo de ser e de pensar: o modo calculador. Um cálculo nunca é livre: calcular significa pensar mecânica e deterministicamente. No cálculo podemos prever resultados, mas estes resultados não são questionados. Escatologia, nesta explicação, portanto, significa: a possibilidade de um destino último da história da humanidade. Uma destinação última pode significar o fim do evento histórico e do "evento" filosófico, com a morte do homem, mas também pode significar o niilismo positivo, como uma preparação para um novo começo. O homem é livre para a morte e pela morte, mas, esquecido de seu ser, o homem deixa de ser mortal e se transforma em animal biológico. Assim, fisiologicamente interpretado, o ser humano pode ser estocado em hospitais por tempo indeterminado. Tempo aqui não significa temporalidade, pois carece de experienciação, mas significa, novamente, cálculo. O que podemos entender do tempo da espera e da esperança? Certamente alguém pode preferir "despertar" em outro tempo após longo tempo em coma. Mas não há garantias. É nesse horizonte, também sem garantias, que Heidegger pensa o perigo extremo de extinção do próprio ser humano. Mas, inspirado nos versos de Hölderlin, vê o florescimento do que pode salvar, pois no perigo extremo há, no seu limite, a possibilidade de superação. A salvação, no entanto, somente pode florescer com o questionamento radical.

    1 O QUESTIONAMENTO DA TÉCNICA SEGUNDO HEIDEGGER
    "Tudo o que é essencial, não somente o essencial da técnica moderna, em todos os lugares, se mantém oculto por mais tempo. Não obstante, permanece referido a seu imperar enquanto o que antecede a tudo: o que é primordial. [.] Aos homens, a madrugada inicial se mostra apenas no final." [4]

    É no fim que se vislumbra o primeiro começo, a origem. Heidegger reconhece a antecedência cronológica e, portanto, historiográfica da ciência exata da natureza (teoria física) em relação à técnica moderna. Mas o elemento técnico já naquele momento se instalava, subsistindo, como Gestell. A ciência exata é historiograficamente anterior à moderna técnica, mas, historicamente é posterior; posto que a técnica, em sua essência, a precede. Justamente porque é a técnica que impera como o primordial. O primordial é anterior. Assim, a física já guardava a essência da técnica e já preparava "o recolher que desafia no desabrigar requerente": a própria técnica. (HEIDEGGER, 2007, p. 386).

    A técnica não é uma aplicação da ciência moderna, mas o seu modo próprio de "conhecer". A marca da origem técnica da ciência moderna se mostra na exigência que aceitemos o princípio de regularidade e a forma específica como esta regularidade é pensada: ou seja, como necessidade que se impõe à razão, mesmo quando não podemos dizer com certeza de onde tiramos tanta certeza. Assim, um dos temas centrais da filosofia heideggeriana da técnica é o seu caráter impositivo. Impor condições é da sua natureza. O modo técnico de tomar as coisas é o "desafio" ou "provocação" (Herausfördern, Herausforderung). Não se obedecem aos ritmos e potencialidades das coisas. Não nos limitamos mais a apenas acelerar os ciclos naturais. Já determinamos o que a natureza deve produzir. O brilho do sol e a força do vento são desafiados a revelar suas possibilidades energéticas. Inventam-se organismos feitos de partes de outros organismos. O desafio colore todas as nossas relações: todas as coisas são tomadas como "estoque", "recurso" ou "fundo" (Bestand) que se oferece para variadas expectativas. A técnica é uma forma pré-consciente e pré-deliberada de se relacionar com as coisas, ou seja, o próprio modo de aparecimento das coisas. A provocação é uma condição geral dos fenômenos, que se caracteriza precisamente por excluir todas as outras. (DRUCKER, 2004. p. 71).

    A técnica nos provoca e, assim, nos convoca. A técnica se apropria do tempo e do ser humano na provocação que apela por correspondência. Corresponder ao apelo é, ao mesmo tempo, realizar e ser realizado pela técnica. Ou seja, ao corresponder ao apelo gestéltico, o ser-aí se realiza enquanto ser humano e realiza a destinação histórica: a própria técnica como evento apropriador. Há, assim, um comprometimento entre ser-aí e técnica.

    Heidegger, no início do texto A questão da técnica – a partir de sua interpretação das quatro causas do ente, segundo Aristóteles – descreve o que ele considerou a relação entre a causalidade e o que há de instrumental na técnica. Sua interpretação dos conceitos de causalidade e télos abre uma nova perspectiva sobre o que está em jogo, tanto no fazer como no pensar.

    Heidegger pensa outro tipo de explicação para o que se entende tradicionalmente por causalidade, no sentido de se buscar um fim ou um objetivo. O fim é o início da coisa criada, é o seu télos, na interpretação de Heidegger. A causa é entendida como um comprometimento entre o que primeiro causou e que, no presente mantém o "efeito". As causas se mantém causando no télos, na articulação entre as causas do ente, que o deixam situar no mundo. Na situação de mundo comprometem-se mutuamente presente, passado e futuro. É esse o mesmo sentido da explicação em Ser e Tempo sobre nossa dívida com o tempo. Somos "culpados" por existir, simplesmente porque existimos. À medida que existimos, estamos comprometidos com o que nos causa e com o que causamos. Somos culpados por existir, pois estamos comprometidos com nós mesmos. Esse comprometimento se amplia quando, convocados pela Gestell, correspondemos ao seu apelo, simplesmente calculando. Essa correspondência já é uma "cumplicidade", um comprometimento. "O comprometimento tem o traço fundamental desse deixar situar (An-lassen) no sentido de um tal deixar situar". (HEIDEGGER, 2007, p. 379). É nessa situação que o não-presente se presenta, se produz como poiesis. "A physis é inclusive poiesis no mais alto sentido" (p. 379), pois é auto-poiética. (HEIDEGGER, 2007, p. 377-380).

    Na sua origem, a técnica mais antiga, entendida como techne, já pertence à poiesis. Tanto techne como episteme são modos de desabrigar, e "ambas são nomes para o conhecer em sentido amplo. Significam ter um bom conhecimento de algo, ter uma boa compreensão de algo. O conhecer dá explicação e, enquanto tal, é um desabrigar". (HEIDEGGER, 2007, p. 380).

    Também a técnica moderna é um desabrigar, mas não no sentido da técnica manual mais antiga, como um desabrigar da poiesis. A técnica mais antiga tinha o sentido poiético em harmonia com a physis, que deixava desabrigar a produção como cultivo. A physis transformada em natureza, determinada pela ciência exata, é então, um desabrigar que desafia o cultivo como produção. Assim, não se trata mais de um cultivo propriamente, mas de uma provocação que transmuda a physis em natureza e, nesse sentido, provoca à produção, tendo o ser humano como medium desse processo. A técnica provoca e convoca homem e natureza.

    O desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se desdobra num levar à frente no sentido da poiesis. O desabrigar imperante da técnica moderna é um desafiar <Herausfordern> que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal. Mas o mesmo não vale para os antigos moinhos de vento? Não. Suas hélices giram, na verdade, pelo vento, permanecem imediatamente familiarizadas ao seu soprar. O moinho de vento, entretanto, não retira a energia da corrente de ar para armazená-la". (HEIDEGGER, 2007, p. 381).

    No que o antigo camponês cuidava e resguardava[5]a moderna técnica desafia, desabriga e reserva em estoques. "O fazer do camponês não desafia o solo do campo. Ao semear a semente, ele entrega a semeadura às forças do crescimento e protege seu desenvolvimento". (HEIDEGGER, 2007, p. 381).

    O produzir da poiesis, segundo Heidegger, leva o que está oculto ao seu desocultamento. O processo poiético é, portanto, alethéico. Alétheia significa desvelar. E o que se mostra no desvelamento é a verdade. A verdade como representação é o ocultamento da verdade como alétheia. Do mesmo modo, a técnica pensada como meio para fins é um encobrimento do seu ser que, encoberto, permanece não-questionado.

    A técnica não é, portanto, meramente um meio. É um modo de desabrigar. Se atentarmos para isso, abrir-se-á para nós um âmbito totalmente diferente para a essência da técnica. Trata-se do âmbito do desabrigamento, isto é, da verdade. (HEIDEGGER, 2007, p. 380).

    Mas se o desabrigar da técnica não é uma determinação antropológica, qual o papel do homem nesse jogo? O papel do humano é o papel da representação e da correspondência a um apelo. É da "natureza"[6] do homem o corresponder e o representar.

    (.) Onde quer que o homem abra seu ouvido e seu olho, abra seu coração, liberte-se de todo o seu pesar, ao imaginar e operar, ao pedir e agradecer, em toda parte sempre já se encontrará levado para o que está descoberto. Seu descobrimento já aconteceu todas as vezes que convoca o homem nos seus modos de desabrigar a ele dispostos. Se a seu modo o homem, no seio do descobrimento, desabriga o que se apresenta, então ele apenas corresponde ao apelo do descobrimento, mesmo onde se opuser a ele." (HEIDEGGER, 2007, p. 384).

    É esse o mesmo sentido, de correspondência, que Heidegger ilustra com o exemplo do "funcionário da técnica". Está o homem a serviço da técnica quando a apoia fervorosamente e também quando a nega absolutamente. Negar ou aceitar são ambas atitudes cegas, correlatas das concepções de mundo e das ideologias em geral.

    É por esse motivo que a técnica moderna não é um mero fazer humano. Mesmo a tomada da natureza como uma região da representação do homem não é por ele mesmo determinada. Esta determinação é dada, segundo Heidegger, pela essência da técnica, à qual, nesse sentido, o homem corresponde, ou responde ao apelo. O que apela ao homem é o que subsiste na invocação que requer e desafia: é a essência da técnica, denominada Gestell. (HEIDEGGER, 2007, p. 384).

    Heidegger, para explicar e justificar o uso do termo Gestell, para designar a essência da técnica, compara sua "extravagância" que, segundo ele, "é um antigo expediente do pensamento" com o uso feito por Platão da palavra eidos. Do mesmo modo que, corriqueiramente, Gestell significa uma estrutura ou armação, algo como uma prateleira de livros; eidos significava cotidianamente aparência de uma coisa visível.

    [.] Platão, no entanto, ousa denominar com essa palavra algo completamente incomum, o que exatamente não pode e nunca será possível captar com os olhos sensíveis. E mesmo assim ainda não terminamos com o que há de incomum nesta atitude. Pois idéa denomina não apenas o aspecto não sensível do que é sensivelmente visível. Aspecto, idéa, designa e é também o que perfaz a essência do que é possível ouvir, apalpar e sentir, daquilo que de algum modo é acessível [.]. (HEIDEGGER, 2007, p. 385).

    Mas não aceitemos tão facilmente a justificativa de Heidegger sem nos perguntarmos se a comparação feita refere-se somente e simplesmente a um expediente de pensamento. Certamente há mais semelhança entre eidos e Gestell do que é explicitado no texto de Heidegger. Comparativamente, o que subsiste, o hypokeimenon ou "subjectum", tanto no conceito de eidos como no conceito de Gestell, é a pura forma: é a essência. No que Platão considerava o paradigma eterno, cuja participação era o que se nos aparece como dóxa, Heidegger, ao contrário, mantém a imanência, mas, paradoxalmente, separa o ente do ser na diferença ontológica. É por isso que a essência da técnica não é nada de técnico, porque se fosse assim, ser e ente se confundiriam, imanentemente. Se do ponto de vista ontológico, a filosofia de Heidegger se mantém imanente, ou, em termos de Ser e Tempo, pretende superar a dicotomia imanência-transcendência, contemplados existencialmente no conceito de Stimmung ("atmosfera"); conceitualmente – diga-se metafisicamente – sua filosofia permanece metafísica. É impossível explicar a diferença ontológica sem fazer metafisica, entendida como transcendência.

    O homem, sujeito da técnica e sujeito à técnica, revela-se não como subjectum, mas como aquilo que se sujeita, se submete à técnica. Nesse sentido, a subsistência não é o homem, mas a própria essência da técnica: a Gestell. Todo trabalho técnico desenvolvido pelo homem é, conforme Heidegger, apenas uma correspondência ao desafio apelativo da técnica. A técnica, em essência, não é nada de técnico:

    Armação significa a reunião daquele pôr que o homem põe, isto é, desafia para desocultar a realidade no modo do requerer enquanto subsistência. Armação significa o modo de desabrigar que impera na essência da técnica moderna e não é propriamente nada de técnico. Ao que é técnico pertence, em contrapartida, tudo o que conhecemos como sendo estrutura, camadas e suportes, e que são peças do que se denomina como sendo uma montagem. Esta, contudo, com todo o seu conjunto de peças, recai no âmbito do trabalho técnico, que sempre corresponde apenas ao desafio da armação, mas nunca perfaz esta ou mesmo a efetua. (HEIDEGGER, 2007, p. 385).

    A técnica em sua essência não é realizada pelo homem simplesmente, pelo contrário, ao corresponder ao apelo gestéltico é a técnica que efetua o homem. O homem nem perfaz nem efetua a técnica. Mas essa armação (Gestell) é um modo de desabrigar, é alétheia, e, assim, torna verdadeira a moderna ciência da natureza, desabrigada da physis e entendida agora como representação, como natureza. Objetivada como natureza, tornada objeto para um sujeito, ela corresponde à "postura requerente do homem", que funda a ciência exata da natureza.

    [.] Seu modo de representar põe a natureza como um complexo de forças passíveis de cálculo. A física moderna não é, por isso, física experimental porque coloca em ação aparelhos para questionar a natureza, pelo contrário: porque a física põe a natureza como pura teoria, para que ela se exponha como um contexto de forças previamente passível de ser calculado, por isso o experimento é requerido, a saber, para questionar se a natureza assim posta se anuncia e como ela se anuncia. (HEIDEGGER, 2007, p. 385).

    Heidegger reconhece como já foi mencionado que a ciência exata da natureza, em termos historiográficos, é anterior ao advento da técnica moderna, mas somente em termos historiográficos. Em termos históricos[7]a teoria física da natureza se mostra como uma preparação para a essência da técnica. Ainda que a historiografia relate os fatos objetivamente registrados no tempo, na origem da essência da técnica moderna, como toda essência, deve ser entendida no horizonte da temporalidade e da historicidade, conforme os parágrafos 72 e subsequentes de Ser e Tempo:

    A análise da historicidade da presença [Dasein] busca mostrar que esse ente não é "temporal" porque "se encontra na história", mas, ao contrário, que ele só existe e só pode existir historicamente porque, no fundo de seu ser, é temporal. (HEIDEGGER, 2006b, p. 468).

    O essencial, segundo Heidegger, é aquilo que a tudo antecede do ponto de vista da historicidade e, portanto, de relevância histórica. O que é primordial a um ente se revela como sua essência. Mesmo que sua preparação a anteceda – como toda preparação – do ponto de vista cronológico. Por esse motivo, "aos homens, a madrugada inicial se mostra apenas no final". (HEIDEGGER, 2007, p. 386).

    Sem vislumbrarmos esse início ou origem, não questionaremos de modo radical as bases da técnica. Não questionada em suas bases a técnica moderna é entendida como "ciência da natureza aplicada". Somente no questionamento ou problematização da técnica é que sua essência se revelará para nós. Heidegger, tal como Platão, nomeou o que considerava essencial.

    A técnica, como já foi esclarecido, não está além de um fazer humano, embora não seja dirigida pelo homem. O desabrigar da armação "não acontece somente no homem e, decididamente, não por ele". (HEIDEGGER, 2007, p. 387). Esta ambiguidade é comum a toda essência. O homem guia e é guiado pela técnica.

    Heidegger afirma que a essência da técnica é ambígua, da mesma forma que a essência de todas as demais atividades humanas o são, porque fecha e, ao mesmo tempo, revela. (Como? O pensador não deixa claro: será porque essa essência cria condições de refletir sobre a verdade a respeito de nosso modo de ser?). Porém, a armação (Gestell) carrega consigo um risco muito maior, quando pensamos a forma e o tipo de exigência que nos coloca. A reificação que ela promove pode levar ao completo esquecimento da essência da verdade, que é abertura tanto quanto fechamento, e, no limite, à supressão do próprio ser humano. (RÜDIGER, 2006, p. 148).

    Na reificação promovida pela técnica, valores, ideias e pessoas são transformadas em objetos e moeda de troca: as instâncias do espírito se convertem em objetivações. O que antes era incomensurável agora está submetido aos ditames do cálculo. Assim, falamos de compra e venda de força de trabalho, de capital "intelectual" e assim por diante. É nesse horizonte que a coisa é transformada em objeto. Mas não somente as coisas em geral, mas também o próprio ser humano se converte em objeto de negócios. Tornado objeto o ser humano, representado, reificado, quem questionará os destinos da humanidade? Heidegger antevê um perigo nesse destino técnico.

    Para o filósofo de Ser e Tempo, somos conduzidos (Geschick) ser-historialmente por um destino. No entanto esse envio histórico é também um desabrigar, é poiesis. E, assim, retornamos ao início, no solo do qual, frente ao niilismo do encobrimento do ser, pode, no perigo, crescer também a salvação. Que perguntas, agora que voltamos ao início, devemos nos colocar? Que possíveis saídas surgem "onde floresce o perigo"?

    1.1 Pressupostos: do Pré-temático ao Inquestionado

    O elemento técnico aparece já em Ser e Tempo, embora ali não seja tematizada a questão da técnica propriamente. O conceito de instrumento (Zeug), e sua relação com o ser simplesmente dado (Vorhandenheit) já são um indício de um futuro tratamento dessa questão.

    A coisa manualizada como instrumento não tem o simples caráter material ou substancial, pelo contrário, o objeto simplesmente dado (Vorhandenheit) é transformado em instrumento ou considerado instrumento somente a partir de seu uso, sua "instrumentalidade" é o que garante à coisa a categoria de instrumento (Zeug). Na verdade há uma diferença sutil entre instrumento e manual, o instrumento por si nada significa, é um ente simplesmente dado; ao passo que o manual ou a manualidade é o próprio sentido de ser do ente simplesmente dado (intramundano). Ou seja, o ente intramundano tem um sentido originário pré-temático na manualidade, mas é transformado em ser simplesmente dado na tematização. (LOPARIC, 2007, p. 2).

    Nessa "pragmática" heideggeriana, o que está à mão não diz respeito a uma mera disponibilidade[8]pois somente há sentido de manualidade quando o objeto de fato está sendo ele mesmo, ou seja, está operando. Assim, a ação de martelar do martelo diz respeito à sua manualidade. Em outras palavras, não há instrumentalidade em si, há um instrumento que, à mão, se torna um manual. Somente nesse sentido instrumentalidade pode ser sinônimo de manualidade. Para Heidegger, o manual tem primazia relativamente ao "instrumento simplesmente dado", simplesmente porque a manualidade representa o sentido do ente intramundano.

    O uso dos instrumentos, como indicado em Ser e Tempo, diz respeito ao uso artesanal, manual. A questão da técnica moderna somente é abordada com a virada do pensamento de Heidegger. No texto A Questão da Técnica, Heidegger retoma o tema do instrumento, mas sob novo enfoque. Em resposta à questão "o que é a técnica?", há duas respostas: "[...] técnica é um meio para fins[9][...] técnica é um fazer humano". (HEIDEGGER, 2007, p. 376). O homem, ao visar os fins, estabelece os meios. O meio técnico é o instrumentum técnico: tanto o instrumento empregado como o pensamento empregado – calculador – são meios para uma finalidade.

    [...] O aprontamento e o emprego de instrumentos, aparelhos e máquinas, o que é propriamente aprontado e empregado por elas e as necessidades e os fins a que servem, tudo isso pertence ao ser da técnica. O todo destas instalações é a técnica. Ela mesma é uma instalação: expressa em latim, um instrumentum. (HEIDEGGER, 2007, p. 376).

    Esta caracterização da técnica como um fazer humano ou como um meio para fins é, segundo Heidegger, uma determinação instrumental e antropológica da técnica. Com outras palavras, tanto o instrumental, como o seu operador, se corresponder ao apelo da Gestell, serão, ambos instrumentum. Tal determinação é o que melhor define as técnicas modernas, como "algo de novo diante da técnica manual mais antiga". (HEIDEGGER, 2007, p. 376). A técnica como essência (Gestell), no entanto, não é um mero meio, mas é "um modo de desabrigar" (HEIDEGGER, 2007, p. 380). Ou seja, o desabrigar de algo revela sua verdade, sua essência.

    Conforme o § 12 das Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), intitulado Evento e História (Ereignis und Geschichte), a História, do mesmo modo que em Ser e Tempo, é entendida como o próprio evento apropriador, como Ereignis, exatamente porque historicidade e existencialidade guardam entre si um nexo originário:

    Historia não tomada aquí como un ámbito del ente entre otros, sino sólo en vista al esenciarse del ser [Seyn] mismo. De este modo, ya en Ser y tiempo la historicidad del ser-ahí há de entenderse sólo desde la intención fundamental-ontológica y no como un aporte a al filosofia de la historia presente ante la mano. [.] El evento-apropriador es la historia originaria misma, con lo que podría insinuarse que aquí en general la essencia del ser [Seyn] es concebida "históricamente". (HEIDEGGER, 2006a, p. 43). [10]

    História, entendida desse modo, na perspectiva de Heidegger é mais do que "feito e vontade", pois também um destino pertence à história. (HEIDEGGER, 2006a, p. 44).

    A história (Geschichte) compreendida como equivalente ao evento-apropriador, é uma verdade. A verdade que, em Ser e Tempo, era entendida como desvelamento (alétheia), agora, com a questão da técnica, tem o sentido de evento apropriador (Ereignis). No que o des-velamento apresentava a coisa ela mesma como fenômeno, a técnica revela o des-abrigar de todo mistério[11]A Gestell como essência da técnica tem o estatuto de verdade num sentido abrangente e totalizante: é a verdade que se mostra não como o que se mostra por si, mas como o que se afirma por si: é um acontecimento. O que acontece essencialmente é o enquadramento de tudo em determinações maquínicas. O algoritmo garante a individuação da coisa tornada objeto para um sujeito: a representação. E assim fica claro o papel do homem no advento e manutenção da técnica: é da "natureza" ou destino do homem o corresponder a esse apelo técnico. Ele corresponde representando, sem se dar conta que ao representar ele não vive o mundo, mas apenas visões, imagens ou concepções de mundo: é o mundo objetivado, também tornado objeto para um sujeito. É no homem que o mundo se torna imagem de mundo.

    O processo básico da época moderna é a conquista do mundo como imagem. A palavra "imagem" significa agora o produto [Gebild] do produzir representacional. O homem luta aí por uma posição em que possa ser o ente que dá a norma a todos os outros e estabelece parâmetros. Já que esta posição se estabelece, ramifica e declara como visão de mundo, a relação moderna com o ente no seu desdobramento decisivo transforma-se na disputa entre as visões de mundo, mas não entre quaisquer delas. A luta só ocorre entre aquelas que já decidiram com o mais alto grau de firmeza as posições fundamentais mais básicas do homem. Em prol da luta entre visões de mundo, o homem mobiliza a violência irrestrita do cálculo, do planejamento e do cultivo de todas as coisas, e o faz de acordo com o sentido desta luta. A ciência enquanto pesquisa é uma forma indispensável desta auto-instalação do mundo, um dos caminhos pelos quais a época moderna se lança à consumação de sua essência, com uma velocidade insuspeitada por aqueles que dela participam. Com a luta entre as visões de mundo, a época moderna entra pela primeira vez no trecho decisivo da sua história, e supostamente passível da mais longa duração (cf. apêndice 11).[12]

    Representado, o ente é enquadrado nas determinações da técnica. A desertificação do ser técnico concebe, no isolamento ôntico, entes isolados. Não há liberdade possível no isolamento. O ser-aí, essencialmente livre – ao menos livre para a morte – dá lugar ao homem gestéltico: enquadrado, padronizado, acomodado, instalado e, nas fábricas de vidas[13]e mortes[14]estocado.

    Os estoques, cada vez mais, permanecem por tempo mais longo e, muitas vezes, indeterminado. A indeterminação do que pode ser congelado (criogenia) confunde-se com a indistinção do que não tem mais distância. Não ter mais distância não significa ter proximidade, pelo contrário, a supressão de toda distância é a supressão de toda proximidade. Ao suprimirmos a distância não nos aproximamos dos seres. Essa é uma das questões (da técnica) mencionadas por Heidegger na conferência A Coisa. A questão da técnica, entre outras coisas, questiona a indistinção e a uniformidade das coisas tornadas objeto. A coisa representada é o objeto para um sujeito. Mas uma coisa subsiste sem a objetificação.

    Tudo está sendo recolhido à monotonia e uniformidade do que não tem distância. Como assim? Será que tal recolhimento é ainda mais angustiante do que a explosão de tudo? O homem se estarrece com o que poderia ocorrer na explosão das bombas atômicas. O homem não percebe o que, de há muito, já está acontecendo, e está acontecendo, num processo, cujo dejeto mais recente é a bomba atômica e sua explosão, para não falar da bomba de hidrogênio. Pois levada às últimas possibilidades, bastaria apenas a sua espoleta para eliminar toda a vida na terra. O que esta angústia desesperada ainda está esperando, quando o terror se está dando e o horror já está acontecendo? (HEIDEGGER, 2010, p. 144).

    Ora, a não-distância e a proximidade são mutuamente excludentes, no sentido de que ao me distanciar no objeto eu não me aproximo da coisa (o que subsiste no objeto). A coisa é o que há de mais próximo e o que se torna mais distante, quando tornada objeto. "A jarra continua receptáculo, quer a representemos ou não. Com ser receptáculo, a jarra subsiste em si por si mesma". (HEIDEGGER, 2010. p. 145).

    Um dos perigos da técnica é o de transformar também o homem em objeto para um "sujeito". Objeto de seu próprio consumo o homem já é há muito tempo[15]no entanto, também é sujeito desse consumo. O perigo é o de nos tornarmos objetos manipulados pela maquinação (Gestell). Reduzidos a meros meios para fins, seremos, então, equiparados a hidroelétrica em relação ao rio Reno. Aliás, pelo contrário, ao rio Reno (objeto) em relação à hidroelétrica ("sujeito" da energia). É esse sentido instrumental de técnica como meio, que Heidegger ilustra com o exemplo da hidroelétrica. "A central hidroelétrica não está construída no rio [...], é o rio que está construído na central elétrica." (HEIDEGGER, 2007, p. 382) O que isso significa? Que o rio Reno existe agora e é operado em função de uma finalidade. O rio se tornou mero meio para um fim. Assim, o Reno foi "encomendado" (bestellt) para gerar e armazenar energia. Com vistas à produção, os meios são encomendados pelo desabrigar desafiante da técnica moderna. Assim desafiado, o rio Reno se transforma em fonte ou mero meio de produção de energia.

    Ainda que se "revitalize" o Reno e suas imediações, tudo o que está sendo revitalizado o está em nome de uma encomenda. O Reno, em primeiro lugar é encomendado para a produção e armazenamento de energia e, secundariamente, é encomendado para o turista e o cosmopolita. É típico da época moderna das imagens e concepções de mundo, a preservação com vistas a um proveito. Não se pensa na preservação da natureza, mas dos recursos naturais. A natureza é transformada em reserva de recursos.

    As supostas alternativas à exploração frequentemente se movem dentro do mesmo modo desafiante de agir e pensar. Uma boa ilustração é o movimento ecológico. Ainda que se entenda como o oposto de uma provocação, o movimento ecológico pode ser uma forma dela. Consumir não quer dizer necessariamente absorver e destruir. Pode-se consumir algo apenas por levantar expectativas prévias, apenas por orientar previamente o florescimento dos processos naturais para algum tipo de rendimento. A natureza é tomada como fundo para uma exploração menos rápida e agressiva, mas igualmente disponibilizante. O uso planejado e massivo da natureza por si mesmo já é uma forma da exploração, pelo simples fato de ser uma negação do selvagem e do nativo. Até aqueles que se apresentam como os adversários da exploração propõem medidas destinadas apenas a tornar o inevitável mais ameno. Ao fazê-lo, no entanto, adotam a crença no inevitável. (DRUCKER, 2004, p. 80).

    Se os recursos tendem a se extinguir, então, sabidos dessa inevitabilidade, devemos tornar o desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade do desenvolvimento é apenas mais uma concepção de mundo. O que se visa com o desenvolvimento sustentável não é a sustentabilidade, mas pura e simplesmente o desenvolvimento. Sustenta-se a coisa não por ela mesma, mas com vistas a um fim: o desenvolvimento.

    Para se atingir a potência máxima da produção, deve-se, de antemão, conhecer as leis que regem o movimento do universo. Deve haver uma lei e uma lógica que corresponda a esse desejo de representação. Essa produção é comandada por uma lógica. O nome dela é cibernética:

    O desabrigar que domina a técnica moderna tem o caráter do pôr no sentido do desafio. Este acontece pelo fato de a energia oculta na natureza ser explorada, do explorado ser transformado, do transformado ser armazenado, do armazenado ser novamente distribuído e do distribuído novamente ser comutado. Explorar, transformar, armazenar e distribuir são modos de desabrigar. Este, contudo, não decorre de modo simples. Também não desemboca em algo indeterminado. O desabrigar desabriga para si mesmo os seus próprios e múltiplos caminhos engrenados, porque os dirige. A direção[16]mesma, por seu turno, é conquistada em todos os lugares. A direção e a segurança tornam-se inclusive os traços fundamentais do desabrigar desafiante. (HEIDEGGER, 2007, p. 382).

    É nesse mesmo sentido que Loparic cita as inquietações de Heidegger quanto à produção de seres humanos. O ser humano quer se dirigir a si. Em nome desse governo manipula-se a vida e a morte. Mas é exatamente nisto que consiste o grande equívoco do homem: ele não se dá conta de que, ao governar, não governa de fato, mas é mais um instrumentum a serviço da Gestell. A instrumentalidade do ser humano consiste não apenas no operar os instrumentos da técnica, mas em se converter ele mesmo num instrumento. "Às vezes parece que a humanidade da época moderna tem pressa em atingir o seguinte objetivo: que o homem se produza tecnicamente a si mesmo". [...] "Visto que o ser humano é a matéria-prima mais importante, pode-se contar que, um dia, com base em pesquisa química contemporânea, serão erigidas fábricas para a criação artificial do material humano". (LOPARIC, 2007, p. 1).

    Com a virada do pensamento do sentido do ser (Ser e Tempo) para a verdade do ser (A Questão da Técnica e Beiträge zur Philosophie- Vom Ereignis), o que Heidegger indica é que a "autonomia" do Dasein em relação ao seu destino é substituída por um determinismo ser-historial. Ou seja, "o sentido do ser configurado como técnica moderna não resulta de um projeto executado pelo Dasein, mas da acontecência (Ereignis) do ser[17]ele mesmo [...]" (LOPARIC, 2008, p. 670). O que em Ser e Tempo é considerado temporalidade (existencialidade), com a virada, transforma-se em acontecência (evento). Nesse sentido, seinsgechichtlich pode ser traduzido como ser-acontecencial. Pois o que no âmbito do ser-aí significava história ou ser-historial, no bojo[18]da técnica pode ser entendido como evento: é o ser como acontecimento. O acontecimento gestéltico é provocativo. Provocação a que o homem, atendendo ao apelo, corresponde, uniformizando e sendo uniformizado:

    A regularidade e homogeneidade são resultado da provocação. Toda regra a priori impõe condições universais aos fenômenos, e assim os torna um tanto parecidos entre si, um tanto regulares, como Kant já sabia. Uma vez que não se vê nenhum impedimento visível ao florescimento livre, imaginamos que não existe nenhuma restrição operando aí. Este aspecto é perturbador, na visão de Heidegger. Para ele, a diversidade e a espontaneidade têm valor intrínseco. Algo sempre se perde, mesmo quando ganhamos em troca espécimes mais "perfeitos". A imposição de condições já é uma forma de interferir com todo brotar espontâneo. Carneiro Leão prefere traduzir Bestand por "dis-ponibilidade". Sob o desafio, todos os entes estão definidos de antemão como disponíveis. A expressão é feia, sem dúvida, mas reflete o que se passa: o ente está constantemente oferecido, de forma uniforme e constante, ou seja, de tal modo que qualquer outra lei é excluída. (DRUCKER, 2004. p. 72).

    O que sempre se perde, quando representamos as coisas como objeto são as coisas mesmas. A subsistência é transferida da coisa para o eu que objetifica. O Dasein se torna homem, correspondente ao apelo uniformizador da técnica e, ao se tornar homem, naturalizado, se afirma como subjectum substituto da coisa subsistente no objeto, mas, em contrapartida, se transforma em objeto da técnica. Essa, como essência (Gestell), subjaz ao homem como modo de pensar maquinador. Nesse sentido a substância do pensamento é retirada do humano e transferida ao tecno-logos, como modo de pensar algorítmico.

    O que ocorre é que o sentido do ser pensado a partir do âmbito ontológico-existencial, dá lugar ao pensamento da verdade do ser, no horizonte ontológico-acontecencial (seinsgechichtlich) [19]Comparativamente ao conceito hegeliano de espírito, o acontecimento [Ereignis] diz respeito a um descontrole do Dasein frente ao seu destino. As possibilidades antes existenciais (ou "vivenciais") agora, segundo Heidegger, são técnicas, e não são determinadas pelo Dasein (existencial), mas pelo próprio evento apropriador (ser-historial). O Dasein, agora homem[20]apenas corresponde a essa determinação apeladora.

    As técnicas manipuladas pelo homem são modos técnicos ou técnicas instrumentais, a técnica como essência não é manipulada pelo homem, pelo contrário, é ela que, segundo Heidegger, determina as ações humanas, pois representa o sentido do ser na totalidade de nossa época (Neuzeit). Se esse sentido de ser é a verdade do ser na nossa época, então à época das imagens de mundo corresponde não propriamente o sentido do ser, mas o esquecimento do ser. Esquecido de seu próprio ser, o ser-aí, agora homem, se representa a si mesmo como subjectum, transformando tudo o mais em objeto de seu consumo[21]Sem se dar conta que, ambiguamente, ao se fazer sujeito em relação aos entes, ele se converte em obejto em relação ao evento apropriador (Ereignis). Tal evento é o que, ao se apropriar também do humano, transformando o existencial em maquínico, reflete o espírito abrangente da apropriação gestéltica. O homem, niilisticamente, corresponde à forma vazia do algoritmo, do cálculo, da Gestell. Esta correspondência é uma resposta humana ao apelo da Gestell.

    Diante dessa correspondência ao apelo, o gigantesco alcança um novo significado, não mais referente à quantidade, mas assume um caráter qualitativo. A qualidade do gigantesco é a magnitude do subjectum que se expressa pelo cálculo da produção e da representação. (HEIDEGGER, 2006a, p. 351).

    Também o ser humano é produzido e reproduzido "quimicamente". A disponibilidade de material humano o transforma em sujeito e objeto de seu próprio consumo. E nesse sentido, o humano se afasta, se esquece do ser, e tanto mais se afasta quanto mais se aproxima das determinações técnicas[22]Loparic faz a seguinte leitura a partir das idéias de Heidegger acerca de inseminação artificial, e sobre homens artificialmente ou quimicamente produzidos:

    O ponto central, entretanto, não é a variedade de produtos humanos possibilitados, mas o fato de a técnica invadir o próprio processo de nascimento. A questão que se coloca em decorrência disso é se um ser humano criado quimicamente de fato nasceu ou se, pelo contrário, a fabricação torna o nascimento impossível, ou seja, os seres humanos fabricados sendo entes que não nasceram. (LOPARIC, 2008, p. 677).

    Mas Heidegger vai além, e, não só pensa a relação entre a fabricação e o nascimento, como também a noção de uma morte fabricada. Em Ser e Tempo, quando se fala em morte como existencial, claramente se está falando da morte como experiência existencial, ainda que impossível, pois não experimentamos a morte de fato. Apenas pressentimos a morte pelo fenômeno da angústia.

    No texto Die Gefahr (O Perigo), conforme Loparic, Heidegger explica o que é a morte como produto técnico, ou produto da técnica:

    Centenas de milhares morrem em massa. Eles morrem? Não, eles perecem. Eles são abatidos. Eles morrem? Não, eles se tornam componentes do estado de fabricação dos cadáveres. Eles morrem? Não, eles são liquidados, sem dar na vista, em campos de extermínio. E nem precisa de tanto – milhões findam miseravelmente agora na China pela fome. (LOPARIC (apud Heidegger), 2008, p. 677).

    Importante lembrar que em Ser e Tempo, os que perecem são os animais, não as pessoas. O animal finda e somente o homem morre. Com o estado de exceção, especialmente em relação à Auschwitz, Heidegger parece ter se dado conta de que também as pessoas são exterminadas artificialmente. Também a morte pode ser fabricada para o homem. Ou seja, o que Heidegger questiona é que não somente a vida, mas também a própria morte é fabricada pela técnica moderna.

    1.2 A Essência da Técnica

    Para Heidegger, a essência da técnica não é nada de técnico. Porque aquilo que chamamos de técnica já é uma representação. A crítica fundamental ao que denominamos de "a questão da técnica" é fundamentalmente uma crítica à representação. Ou seja, a instalação da técnica como modo de agir, atuar e pensar. A era das imagens de mundo, ou das representações reflete o profundo esquecimento do ser.

    Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico. E por isso nunca experimentamos nossa relação para com a sua essência enquanto somente representarmos e propagarmos o que é técnico, satisfazermo-nos com a técnica ou escaparmos dela. Por todos os lados, permaneceremos, sem liberdade, atados a ela, mesmo que a neguemos ou a confirmemos apaixonadamente. Mas de modo mais triste estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro; pois essa representação, a qual hoje em dia especialmente se adora prestar homenagem, nos torna completamente cegos perante a essência da técnica. (HEIDEGGER, 2007, p. 376).

    A partir da interpretação do tratado Ser e Tempo (Sein und Zeit), tomado como pressuposto e pano de fundo, sobre a questão da técnica, ou mais propriamente sobre o fim da questão da técnica, na reflexão a seguir indico a relação entre essa obra e textos aparentemente distantes, como o Die Frage nach der Technik e Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), a partir dos quais tracei um paralelo entre o ser do ser-aí (Cura) e a questão da Técnica. A relação entre o ser do ser-aí e a técnica diz respeito à relação entre o esquecimento do ser e a superação de qualquer questionamento. O niilismo revelado pela questão da técnica se manifesta de vários modos: como negação do questionamento, e como negação do esquecimento. Reina um não-reconhecimento. É esta ambiguidade que se mostra na figura do "funcionário da técnica", mobilizado no não-questionamento. Cláudia Drucker explica do seguinte modo o papel do servidor, senão alimentador, do niilismo[23]técnico:

    O funcionário da técnica não se admite como tal. Ele não consegue se dar conta da sua atitude francamente usurária, em virtude do seu esquecimento constitutivo daquilo que o move. Frequentemente, se considera até mesmo um adversário da técnica. De fato, o niilismo mais completo frequentemente ocorre até mesmo quando é expressamente nomeado como adversário: Aqueles que se supõem imunes ao niilismo são talvez aqueles que se encarregam de forma mais competente da sua difusão. (DRUCKER, 2004, p. 79).

    O ser, primeiramente tomado como ente, depois tornado ente, e, com o evento apropriador reduzido a mero objeto, corresponde à totalidade do ente como meio e produto da técnica.

    É correto dizer: também a técnica moderna é um meio para fins. Por isso todo esforço para conduzir o homem a uma correta relação com a técnica é determinado pela concepção instrumental da técnica. Tudo se reduz ao lidar de modo adequado com a técnica enquanto meio. [.]. Pretende-se dominá-la. O querer-dominar se torna tão mais iminente quanto mais a técnica ameaça escapar do domínio dos homens. (HEIDEGGER, 2007, p. 376).

    A técnica, tomada como meio e como fim, põe tudo à mostra: não há mais mistério, há apenas o ainda-não descoberto ou explicado pela ciência. Ao se descobrir algo na representação, se encobre seu sentido originário (alétheia). Mas como fugir a esse apelo pela exatidão da técnica? Pelo questionamento. Questionando, mantêm-se abertas as possibilidades. Possibilidades significam liberdade. É por isso que, para Heidegger, as ciências do espírito para se manterem rigorosas enquanto tais devem permanecer essencialmente inexatas. A exatidão fecha as possibilidades.

    [.] O rigor da ciência natural matematizada é a exatidão. Aqui, todos os processos devem ser determinados de antemão como grandezas espaço-temporais de movimento, para que possam ser sequer representados como processos naturais. Tal determinação se consuma na medida através de números e contas. Contudo, não é por isso que a ciência natural é exata, isto é, porque calcula corretamente. Ao contrário, ela precisa calcular deste modo porque o jugo com que sua esfera de objetos está comprometido tem o caráter da exatidão. Por sua vez, todas as ciências do espírito, e de fato todas as ciências da vida, têm de ser inexatas, se quiserem, precisamente, permanecer rigorosas. De fato, é possível açambarcar [auffassen] o vivente como uma grandeza de movimento espaço-temporal, mas aí já não se o abarca [fassen]. O elemento de inexatidão nas ciências do espírito não é nenhuma lacuna, mas a satisfação de uma exigência essencial deste modo de pesquisar. Sem dúvida, se comparadas com o rigor das ciências exatas, a projeção e certificação da esfera de objetos das ciências históricas não são apenas executadas de forma diferente. Os resultados são alcançados de modo muito mais árduo do que os alcançados pelo rigor.[24]

    Ora, para se satisfazer as exigências da essência da técnica, basta ouvir e responder ao seu apelo. Para tanto, se retornarmos ao princípio, a gestação da técnica pela ciência exata, reconhecer-se-á nessa preparação o elemento antropológico fundamental. Já naquele momento o ser humano co-respondia ao apelo e, pré-conscientemente, preparava o caminho para o advento da técnica moderna como lógos e fundamento de uma era: a época do esquecimento do ser, representado como ser simplesmente dado.

    2 O ENTE INTRAMUNDANO PRÉ-TEMÁTICO: DA INCONTORNABILIDADE DO SER SIMPLESMENTE DADO NO MANUAL
    Na ontologia fundamental de Ser e Tempo, Heidegger indica o caráter incontornável do ser simplesmente dado: o caráter de incontornabilidade do ser simplesmente dado (no manual) posto em Ser e Tempo e sua possível relação com a questão da técnica representa o núcleo central dessa investigação filosófica e me toma o pensamento doravante.

    O ente pré-temático é o que se mostra na ocupação do mundo circundante.[25] [...] O martelar não somente não sabe do caráter instrumental do martelo como se apropriou de tal maneira desse instrumento que uma adequação mais perfeita não seria possível. [...] [26]

    Se compreendermos bem o que Heidegger diz na citação acima, entenderemos, finalmente, o que o filósofo denomina apropriação. A aparente ingenuidade da citação acima revela o mais profundo sentido filosófico do que seja apropriação. Do mesmo modo que pre-tematicamente, o martelar se apropria do martelo (ente intramundano), como o próprio sentido do martelo, também a técnica, como evento apropriador se apropria pre-tematicamente, pre-conscientemente, da nossa época. Assim, adequadamente, a era das representações, das concepções de mundo, da maquinação, é, numa palavra, técnica. Subjaz a toda essa determinação um destino técnico. Se o destino é gestéltico, então o sentido é gestéltico. Sendo técnico ou gestéltico esse sentido, ambiguamente, ele se revela como verdade do ser da Neuzeit.

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    Mas voltemos ao princípio, em Ser e Tempo.

    O mundo se dá (es gibt). O dar-se (geben) do mundo é refletido como experiência existencial. O mundo se dá originariamente – ontologicamente – como mundo aberto, como existência, temporalidade. Mas o mundo também se dá como presença[27] através do ser simplesmente dado (Vorhandenheit). É porque há o mundo que é possível o ser simplesmente dado. O ente intramundano, no modo da descoberta (descobre ser), somente se mostra porque "a priori" o mundo já se dá como condição ontológica de possibilidade de todo ente intramundano.

    A temporalidade originária é deslocada ou entificada no tempo cronológico, segundo o qual podemos dizer que tal ou tal ente está presente[28]. O mundo do presente é o mundo do ser simplesmente dado. Mas são dois mundos então? De forma alguma. Heidegger deixa claro, desde o início de Ser e Tempo, a ambiguidade dos existenciais: o mundo como ontológico-existencial tem um correspondente ôntico-existenciário. Tal correspondência designa a dupla via da existência: ora existimos autenticamente, ora inautenticamente. Mas inautenticidade ou impropriedade não deve remeter a algo negativo, pelo contrário, o inautêntico se revela como mais um modo de ser do ser-aí. Ao decair da existencialidade plena das tonalidades afetivas (Stimmung), o ser-aí descansa do peso da existência nos modos de ser inautênticos. A fuga constante da angústia e a permanência nesse descanso representam o mundo do impessoal. A inquietude na angústia é abertura, mas a inquietação no medo e no impessoal é fechamento: mesmo na distinção entre o ôntico e o ontológico permanece o caráter de impermanência típico dos seres singulares e finitos. Estendendo essa noção de intranquilidade podemos dizer que o mundo não é tranquilo e, também, não é tranquilo existir. Ser aí é ser intranquilo. E, além de qualquer determinação ética, ser intranquilo pode ser bom, pois nos mantém abertos às possibilidades de ser, possibilidades que permanecem impensadas, irrefletidas na tranquilidade. A tranquilidade e a "felicidade" fecham, transformando o mundo em ser simplesmente dado (Vorhandenheit), porém de modo impróprio, pois é difícil imaginarmos o mundo como um instrumento à mão (Zuhandenheit)[29] e em seguida desinstrumentalizado ou desmundanizado como objeto simplesmente dado; mas o mundo pode ser pensado como mundo presente, e nesse sentido ele pode ser entendido como Vorhandenheit (presentidade)[30]. Novamente, é porque há o mundo[31]que pode haver o mundo [32]

    O modo de lidar no mundo na ocupação é sempre um modo de lidar com o ente intramundano. Quando há de fato o fenômeno da lida ou manuseio, diz-se que o ente é um instrumento, um manual. Seu ser é a própria manualidade (Zuhandenheit). Assim, o sentido de ser do manual é o manuseio. O martelo como ente determinado espaço-temporalmente é simplesmente dado (Vorhandenheit), mas o martelar guarda o sentido de ser do martelo, sentido de ocupação e uso e, por isso mesmo, não tematizado. O que Heidegger tematiza é o que é o mais importante do ponto de vista existencial-fenomenológico e que as ciências não tematizam. Até porque, ao ser tematizado pela ciência, a experiência se transforma em ser simplesmente dado. Assim, a ciência pode medir, calcular e produzir o martelo, mas não o martelar: tal sentido somente pode ser dado pelo uso cotidiano do martelo, no manuseio.

    Desse modo, o ser do ente intramundano[33]"vem ao encontro no mundo circundante". O ser do ente é a Stimme[34]dos entes no mundo, escutada pelo ser-aí, situado e afinado numa Stimmung[35]Nesse sentido e nesse contexto explicativo, o termo Stimmung é perfeitamente traduzível por atmosfera: a "escuta" ao chamado (apelo) dos entes intramundanos refere-se ao sentido da manualidade ou instrumentalidade do martelo, ou seja, o próprio martelar. "Escutar" o martelar do martelo não o coloca fora do ouvido, nem dentro, audição aqui tem um sentido quiasmático, ou "atmosfericamente" [36]situado.

    O que se tematiza nas ciências são os mesmos entes intramundanos, mas com a diferença fenomenológica fundamental: "[...] o ente pré-temático é o que se mostra na ocupação do mundo circundante." (HEIDEGGER, 2006b, p. 115). Podemos dizer que o ente pré-temático é a coisa mesma como subsistente, antes de se tornar objeto para um sujeito. Ou seja, o ente da ocupação manual é o intramundano pré-temático, e, quando tematizamos o ente intramundano o transformamos em ser simplesmente dado. Assim, quando teorizo sobre o martelo eu o entifico e o torno simplesmente dado. Mas o que há de incontornável no ser simplesmente dado no manual é que é o mesmo martelo, o mesmo ente. Na manualidade o martelo não é e nem pode ser tematizado, pois, repito a citação: "o ente pré-temático[37]é o que se mostra na ocupação do mundo circundante". Com outras palavras, enquanto estou martelando eu não tematizo o martelo.

    Até aqui podemos concluir parcialmente que há um duplo sentido de ente intramundano: num primeiro sentido, o ente intramundano como tal, pré-temático na manualidade que, num segundo sentido, ao ser tematizado, se transforma em ser simplesmente dado. Quando o martelo quebra, eu o tematizo e somente nesse momento de tematização é que me dou conta do caráter incontornável do ser simplesmente dado no manual. Ou seja, nos momentos de surpresa, importunidade e impertinência há uma indisponibilidade, quebra ou perda repentina da manualidade do instrumento manual. (HEIDEGGER, 2006b, p. 121-125).

    A surpresa é simplesmente o estranhamento por nos darmos conta de que o manual está indisponível em sua manualidade. Tal instrumentalidade que um dia pertenceu ao manual o mantém como um ente mais que simplesmente dado, pois, o que um dia foi manual pode voltar a sê-lo, e nisso consiste seu sentido. O martelo não se torna simples coisa, mas guarda um sentido íntimo na expectativa que desperta no ser-aí ao indicar o seu sentido manual. É preciso me desembaraçar daquele "troço" que está ali e retomar a "martelidade" ou o martelar do martelo, restituindo-lhe o sentido:

    Os modos de surpresa, importunidade e impertinência possuem a função de mostrar o caráter de algo simplesmente dado do manual. Com isso, porém, não se considera ou encara meramente o manual como algo simplesmente dado. O ser simplesmente dado aqui anunciado ainda está ligado à manualidade do instrumento. Ele ainda não está entranhado como simples coisa. O instrumento torna-se instrumento no sentido de um "troço" do qual gostaríamos de nos desembaraçar; nessa tendência de desembaraço, contudo, o manual se mostra como o que é sempre manual no incontornável de seu ser simplesmente dado. [grifo meu]. (HEIDEGGER, 2006b, p.123).

    O manual, ainda que indisponível, é sempre manual, e essa revelação não se dá por sua manualidade – indisponível no momento de quebra do manual, por exemplo –, mas por aquilo que há de incontornável em si mesmo[38]o ser simplesmente dado. O que revela, ambiguamente, que o manual possui um modo de ser simplesmente dado. E esse modo de ser se torna visível, repito, nos fenômenos da surpresa, importunidade e impertinência. Novamente, "o ente pré-temático é o que se mostra na ocupação do mundo circundante". Ou seja, na surpresa ou indisponibilidade o ente temático se mostra e, somente aí, ele é tematizado: a surpresa, a importunidade e a impertinência revelam o ente intramundano como simplesmente dado (tematizado).

    Quando há indisponibilidade da manualidade não a questionamos, pois ela, assim como a ocupação, é também pré-temática, e está ausente, em seu lugar responde o que resta: o ser simplesmente dado que, não tematizado na instrumentalidade, se mostra presente. Sua presença é questionada: não queremos sua presença embaraçada, mas sim, sua ausência, preenchida de sentido na ocupação cotidiana. Em outras palavras: queremos o martelar do martelo. O conhecimento acerca do martelar do martelo diz respeito a uma fenomenologia: interpelado em seu ser, o ente martelo, dá uma resposta pré-temática: o próprio uso ou manuseio do martelo. No manusear do martelo o ente permanece velado: "Nesse ser, porém, o ente que vem ao encontro na ocupação, permanece, logo de saída, velado pré-ontologicamente."[39] (HEIDEGGER, 2006b, p. 116).

    Pré-ontologicamente significa que, antes de se dar ao mundo como ente, o martelo é ele mesmo mundo, no sentido de ser constitutivo da experiência originária da manualidade. Ou seja, o sentido do ser do martelo é o que permanece velado: é o pré-temático. Tal testemunho pré-ontológico corresponde ao sentido de ser do instrumento, revelado na instrumentalidade. A instrumentalidade está sempre para a manualidade, no seguinte sentido:

    Rigorosamente, um instrumento nunca "é". O instrumento só pode ser o que é num todo intrumental que sempre pertence a seu ser. Em sua essência, todo instrumento é "algo para..." Os diversos modos de "ser para" (Um-zu) (N17)[40] como serventia, contribuição, aplicabilidade, manuseio constituem uma totalidade instrumental. Na estrutura "ser para" (Um-zu), acha-se uma referência[41]de algo para algo. (HEIDEGGER, 2006b, p.116).

    Por um lado, na remissão referencial (Verweisungsbezug), os utensílios e instrumentos se remetem uns aos outros, numa conjuntura. Por outro lado, a totalidade conjuntural de remissões das ocupações com instrumentos e seres simplesmente dados é articulada sempre no horizonte da totalidade estrutural do ser-aí: a Cura. O antecipar-se a si mesmo do ser-aí na Cura possibilita a conjuntura das remissões. As remissões de uma ocupação a outra e de um ente a outro tem seu correlato nas articulações entre uma tonalidade afetiva (Stimmung) e outra, de modo que o ser-aí está sempre afinado em um "humor", sintonizado nessa ou naquela tonalidade. Há uma situação (Befintlichkeit) no mundo: o ser-aí se situa no mundo, como Cura.

    3 NIILISMO: O FIM DO QUESTIONAMENTO DA TÉCNICA
    Mas onde há perigo, cresce também a salvação.[42]

    Qual a relação entre Cura e Técnica? O que há em comum entre elas é que ambas correspondem a uma essência. É essencial ao homem o preocupar-se (Cura), e é essencial ao espírito de nosso tempo, a Técnica. Cura e Técnica não dizem respeito a modos de ser, mas ao ser mesmo do ser-aí e de nossa era, respectivamente. O salto, ou viragem (khere), da perspectiva da singularidade do ser-aí (de Ser e Tempo) para o ponto de vista ser-historial da Questão da Técnica e das Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), corresponde à mudança de foco a partir da qual Heidegger pensa a essência de um evento apropriador (Ereignis) a que o filósofo chamou Gestell. O termo Gestell pode ser traduzido por maquinação, para que fique claro seu duplo sentido: calculabilidade e maquinização. Esse pensamento calculador diz respeito ao ser da Técnica.

    Aqui chegamos a um momento crítico da questão da técnica: a técnica não se refere apenas a um modus operandi, mas, também, e mais essencialmente, a um modo de pensar: tecno-logos. A tecnologia ao se estabelecer como logos, corresponde a uma força de dimensão totalizante e teológica[43]a partir da qual tudo é pensado e feito, mas ela mesma permanece impensada. A questão da técnica é, no fundo, o questionamento sobre o porquê de a técnica, ao dominar o modo de pensar, permanecer ela mesma impensada. O pensamento calculador, totalizante, na modernidade, suplanta o filosófico e pretende responder questões dessa natureza (filosófica), reduzindo, assim o pensamento filosófico – morada da liberdade – às determinações algorítmicas do cálculo.

    Heidegger lançou filosoficamente o questionamento da técnica, mas, ao ser absorvido e naturalizado culturalmente, esse questionamento se tornou objeto de curiosidades e, banalizado, se converteu em mais uma imagem ou concepção de mundo. Há uma concepção de mundo geral de que há problemas ou questionamentos a se fazer sobre as "tecno" e outras "logias", mas este questionamento não chega ao nível de um aprofundamento reflexivo a partir do qual se poderia indicar uma saída ou alternativa.

    O gigantesco é muito antes aquilo em virtude de que o quantitativo se transforma em uma certa qualidade, e deste modo em uma forma peculiar do grande. Não apenas cada época histórica é grandiosa frente às outras do seu modo distinto, mas também tem o seu próprio conceito de grandeza. Tão logo o gigantesco do planejamento, cálculo, instalação e asseguramento se transmudam, a partir do quantitativo, em uma qualidade legítima, o gigantesco e o aparentemente calculável de forma irrestrita e total se transforma no incalculável. O incalculável permanece a sombra invisível lançada sobre todas as coisas, quando o homem se transforma em sujeito e o mundo em imagem (cf. Apêndice 13).[44]

    Sem saída, no caminho linear mostrado pela técnica, o homem se vê, por um lado refém da ditadura tecnológica que é calculada, mas também calcula: o homem calcula a técnica e a técnica calcula o homem. Quem domina quem, no fim? Não se sabe. Mas é certo que a Técnica dita ritmos de vida e de trabalho. Seu ritmo certamente diz respeito ao tempo que se esgota como cronologia e, assim, impede ao homem a experiência da temporalidade como tal. Ao se tomar a tecnologia como dada, como axioma fundamental de nosso tempo, ela, também naturalizada, permanece com suas bases impensadas, do mesmo modo que a Ciência não se pergunta pelo seu fundamento ontológico, pelo ser ou pelo porquê de seus objetos, mas essencialmente pelo como, ou seja, importa à ciência o caráter funcional. A aceitação geral da tecnologia como dada e, portanto, necessária, é a "resposta" ao como das coisas, mas não ao como as coisas se mostram – fenomenologia – e sim ao como as coisas funcionam. O que é a tecnologia e o que ela significa, ou seja, qual seu sentido e abrangência ficam sem questionamento. O inquestionado, ao se transformar em inquestionável faz surgir um novo deus: a técnica como fundamento.

    Já em Ser e Tempo há a indicação da questão da técnica, não apenas na noção de instrumento (Zeug), como também no conceito de impessoal. O público revela a massa na qual não somos ninguém. Não nos distinguimos dos demais no nivelamento massificado. No horizonte de Ser e Tempo, esta massa homogênea diz respeito ao modo padronizado e, portanto, inautêntico de existência. A inautenticidade ou impropriedade, no entanto, se refere a um modo de ser do ser-aí, do mesmo modo que a autenticidade; não se trata, aqui, de juízos éticos acerca do que seja melhor: autenticidade ou inautenticidade. O que há de fato na existência é esse jogo entre próprio e impróprio. Na impropriedade o ser-aí descansa da existência, e o preço a pagar é a inautenticidade existencial. Mas, logo a angústia nos lembra de nossa condição de mortais, e recobramos nossa "atenção" e "cuidado" para com nós mesmos. Ao recobramos a atenção e o cuidado para com nós mesmos, saímos do cotidiano – público e falador – e retomamos o contato com nosso ser, ou seja, com a Cura. Nossa relação com os outros está ambiguamente estabelecida através do conceito de Cura: Sorge se refere ao modo como experimentamos a temporalidade, através de tonalidades afetivas, a partir das quais co-existimos num mundo "compartilhado". Mas é o mundo onticamente vivido que é compartilhado e não as tonalidades afetivas: é por isso que nesse sentido o mundo é meu mundo, porque ninguém sente ou pressente por mim. Ou seja, o mundo do ser-aí é o meu mundo, mas também é um mundo com os outros. Ambiguamente, o mundo-com-os-outros é ôntico-ontológico, ou seja, é também um existencial.

    O fenômeno totalizante da Cura, que reúne em articulação as tonalidades afetivas, é solipsista no sentido de que eu não posso transferir minha preocupação para outrem, nem posso desistir da existência: sou "responsável" pelo meu ser, no sentido de que estou comprometido[45]comigo mesmo, simplesmente porque existo. Mas, porque se preocupa com os outros, o ser-aí decai no público e impessoal, e se torna novamente ninguém, e, se ocupa, cuida do outro. Não sou eu de fato quem cuida do outro, mas é ninguém que cuida do outro. O eu que cuida do outro é ninguém porque eu não posso ter as experiêncas do outro. A Cura preocupa e faz ocupar – é condição de possibilidade ontológica do cuidado – mas, ao cuidar, ajo como se soubesse o que se passa com o outro, sem de fato sabê-lo. Ou seja, o mundo público pode ser compartilhado, mas o peso da existência cabe a cada ser-aí singular. É por isso que não se pode transferir experiências existenciais: ninguém pode sofrer por ninguém, porque a angústia é sempre solitária, do mesmo modo que é essencialmente solitário o ser-aí. O ser-aí nasce e morre sem jamais comunicar suas experiências existenciais.

    Sorge, termo alemão que designa cuidado ou preocupação, em latim, Cura, significa cuidado ou cura. Cuidar, para Heidegger, ontologicamente, significa se preocupar e onticamente, cuidar (ocupar). Cura (Sorge) se refere a uma essência cujos desdobramentos são: Fürsorge (preocupação propriamente); Besorgen (ocupação) e Besorgnis (cuidado). Se levarmos em conta que Cura é a essência do próprio ser-aí, não fica difícil relacionar este conceito com a questão da técnica. Besorgen diz respeito a uma ocupação. É parte e é típico do ser-aí o ocupar-se o tempo todo: cotidianamente, estamos sempre lidando com instrumentos. O uso instrumental pode ser estendido até a noção de enunciado, ou seja, ao falar usamos um tipo de instrumento: a fala. A ocupação cotidiana e a fala corriqueira se referem a um modo de ser do ser-aí, mas não o único e não o essencial. A questão ou questionamento da técnica surge quando esse modo de ser se torna irrefletido, sobressai ou suplanta a existência autêntica. Neste sentido, retornamos a questão da técnica, que Heidegger considera ser-historial, para uma questão tipicamente humana, contrariando Heidegger: o ser-aí não pode se eximir da responsabilidade (existencial) de ter ele mesmo, agora ser humano, transformado a maquinação em fenômeno essencial da nossa era. Essa "responsabilidade" é também um destino, porque do mesmo modo que somos culpados por existirmos, somos também culpados por co-respondermos ao apelo da técnica. Ao soltar as rédeas do destino nas mãos da técnica, o ser-aí se esquece de que o destino agora está nas mãos de ninguém.

    Não precisamos ir tão longe, fiquemos no cotidiano mesmo: Quem é responsável por isso? Perguntamos a alguém. Geralmente, e nisso o telemarketing é campeão, os responsáveis são quase sempre setores ("Gestell"), compartimentos, departamentos, e nunca pessoas. As responsabilidades são categorialmente distribuídas para que as respostas também sejam formatadas impessoalmente, segundo um padrão. Ou seja, os setores (ninguém), sem que as pessoas se dêem conta, dominam as próprias pessoas. Essa dominação diz respeito ao âmbito do impensado. O irrefletido (impessoal) técnico é tomado como natural e é organicamente incorporado ao ser humano que, inconsciente (esquecido) de sua condição, faz girar a máquina a favor de seu próprio opressor. É nesse sentido que a técnica calcula e é calculada, e o ser humano calcula e é calculado pela técnica.

    O perigo que tomou conta do nosso tempo, e que Heidegger talvez não tenha se dado conta, é o de que o impessoal domina toda a pessoalidade ou autenticidade possível. O que antes – em Ser e Tempo – era o descanso de existir, com o evento, passa a ser o próprio fundamento do ser historial: a técnica é impessoal. O impessoal foi alçado à categoria de fundamento de uma era. A técnica como pensamento calculador funda, assim, a modernidade, no sentido de que, não só ela domina os modos de produção material e intelectual, como também domina o ser do ser-aí (Cura), impedindo a experiência autêntica do tempo. Uma das interpretações da Ereignis é a de que esse evento se apropriou exatamente da temporalidade, transformando a História (Geschichte) em historiografia. A temporalidade, ao ser suprimida da experiência, dá lugar ao mero passar do tempo, o tempo calculado é o marcador do relógio, que dita o ritmo de vida do homem moderno, o trabalho e o lazer se confundem, não apenas há um tempo marcado e calculado para o trabalho e para o lazer, como também, o mono-ritmo de nossa vida identifica trabalho e entretenimento: toda determinação, inclusive a diversão, deve ser maquínica.

    Do mesmo modo que há a indistinção entre entretenimento e trabalho, indiferencia-se também, no âmbito da indiferença ontológica, o engajamento e o não-engajamento. Tanto aquele que critica absolutamente, no sentido de negar, como também aquele que é um defensor ferrenho da técnica, são ambos funcionários da técnica. O filósofo não deve se prestar a esse papel, sob pena de transformar também a filosofia em mais uma concepção de mundo.

    O filósofo não tem como tarefa principal apurar as responsabilidades sobre malfeitos cometidos neste mundo – pelo menos não enquanto filósofo, embora como cidadão continue a ter os mesmos deveres de todos. Quem não pensa a imposição acaba, sem perceber, trabalhando a seu favor através de meias medidas que confirmam o universo técnico ainda mais e, para o futuro. Basta minimizar a questão da técnica e negar que o desafio exerce uma pressão sobre todos nós para endossá-lo. (DRUCKER, 2004, p. 80).

    Questionar a técnica não é confirmá-la, como afirmação, nem negá-la. Questionar consiste em abrir nossa existência para a essência da técnica. Em consonância com Drucker, tanto a recusa da técnica como sua aceitação irrefletidas são endossamentos da técnica. Esse endossamento corresponde ao niilista esquecimento do ser. No esquecimento não reconheço a pressão que desafia. A técnica desafia a coisa e a transforma em objeto. Esse desafio é necessariamente mediado pelo homem, pois somente um sujeito pode conceber um objeto.

    Com o questionamento da técnica, o caráter de ser simplesmente dado ainda é vislumbrado; sem o questionamento esse caráter, esquecido, se torna inquestionado e reina absoluto sobre o ente em sua totalidade. O nome desse reinado é a técnica.

    A técnica representa o fundamento metafísico de uma era, mas também, a meu ver, o fundamento físico. O fundamento metafísico da técnica como Gestell funda não apenas o pensamento como tal – modo de pensar técnico – como também funda o mundo físico, estabelecendo os limites matemáticos e matematizáveis do objeto. Assim a técnica é fundamento metafísico e físico.

    O caráter incontornável ou a incontornabilidade do ser simplesmente dado no manual é reduzida ao ente enquanto objeto. Nessa redução (não-fenomenológica), diga-se reducionismo, o que "sobra" é o próprio ser simplesmente dado e somente ele: o objeto "natural" ou naturalizado.

    Objetificado como ser simplesmente dado, o ente intramundano perde sua manualidade e sua instrumentalidade, que fica reduzida às delimitações do modo de pensar calculador. Assim, a técnica se afirma como o fundamento físico e metafísico incondicionado e infundado que a tudo funda, condiciona e acomoda: o fundamento físico e metafísico da era cibernética.

    O ente intramundano "recua" um passo atrás, se encobre ao ser tomado como simplesmente dado. Na separação entre sujeito e objeto, nesse recuo, o que delimita a sua forma (eidos) é o modo de pensar calculador. Essa forma de pensar subjetiva é fôrma e forma do objeto, representando a relação demiúrgica entre o pensamento considerado modernamente como produtivo (calculador) e o eidos[46]do objeto.

    O objeto tomado como representação levada às últimas conseqüências é símbolo do niilismo da técnica que nega a intimidade, transformando tudo em imagem pública, acessível a todo mundo: não há mais mistério. Esse mesmo niilismo, se há salvação, seria o solo propício para o trânsito a um novo começo do pensamento. Se no perigo extremo da técnica planetária há uma última possibilidade, esta não pode ser técnica. A técnica dá soluções técnicas a problemas técnicos, mas a questão da técnica mesma não é algo técnico. O questionamento da técnica visa buscar uma saída não-técnica, como alternativa a esse modo de ser e de pensar. No estágio de esquecimento do ser, ele (o ser) se encontra presente (como ente). O que está presente não está oculto. O ente presente é tomado como o oculto, o ausente: o ser. Ao se tomar o ente pelo ser, a maquinação oculta absolutamente o ser. O ser esquecido não é pensado nem como mistério. Não havendo mais o mistério, portanto, não há por que haver questionamento.

    O texto Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis), ao questionar a técnica como evento do Seyn, mantém ainda aberto o caminho ao novo começo do pensamento ocidental, mas esse recomeço é somente vislumbrado pelo pensamento, uma vez que já está ser-historialmente, diga-se destinalmente, decidido. Em sintonia com o pensamento de Heidegger, posso dizer: o fim do questionamento da técnica, bem como o recomeço são, ambos, um destino:

    Los Aportes preguntan en una vía que recién se abre a través del tránsito al otro comienzo, en el que ahora ingresa en pensar occidental. Esta vía lleva el tránsito a lo abierto de la historia y lo fundamenta como una tal vez mui larga estancia, en cuyo cumplimiento el otro comienzo del pensar permanece siempre sólo lo vislumbrado pero sin embargo ya decidido. (HEIDEGGER, 2006a. p. 22). [47]

    O que foi vislumbrado já está para sempre decidido como um destino, porque é uma possibilidade. Esta possibilidade de recomeço da tarefa do pensar não pode ser, contudo, técnica. É necessária uma nova potência para o recomeço, talvez poética, como sugere Heidegger.

    O homem moderno plasma seu mundo a partir de uma potência interna (subjetiva). Essa intencionalidade se realiza então, transcendentalmente, na repetição (iteração e reiteração maquínicas) e padronização do modo de pensar dominante (e dominador): esse pensamento será dominante e dominador se ele não se pensar a si mesmo. A filosofia é o pensamento que se pensa a si mesmo, em seu fundamento. A questão da técnica, lançada por Heidegger, ainda representa um questionamento, pois busca capturar o sentido do técnico em sua essência. A questão que é levantada nas ciências não é reflexiva, não se volta sobre si mesma em seu fundamento, mas, pelo contrário, mantém os fundamentos inquestionados. Impensada, a técnica se instala, não apenas como modus operandi, repito, mas, mais essencialmente, como o fundamento desse modo de operar com os objetos no mundo: a técnica é questionada por Heidegger, então, como um modo de pensar – calculador – que funda o ente (coisa) e determina o objeto, a partir de um sujeito pensante cartesiano.

    O próprio pensamento, matemática e ciberneticamente estabelecido – fundado – não se pensa a si, mas se lança no mundo através do cálculo. O objeto calculado é condicionado, estruturado, armazenado e estocado. E esse processo ocorre desde o início do processo calculatório, ou seja, ainda no âmbito da matéria-prima. Essa matéria como natureza tem, de antemão, seu ritmo natural alterado e burlado pelo cálculo (já que a natureza é, agora, entendida como recurso natural, como reserva), que se impõe como nova condição ontológica, uma ontologia da disritmia. A natureza é forçada, coagida, constrangida a se adequar ao ritmo imposto pelo cálculo. Essa nova natureza, agora submetida às leis do pensamento calculador, é exigida de forma coercitiva e constrangedora: ela é forçada a produzir mais e em menos tempo, não porque precisamos de mais, mas simplesmente para ser estocado com vistas ao futuro.

    O caráter incontornável do ser simplesmente dado no manual que, em Ser e Tempo, articula o jogo entre a manualidade (Zuhandenheit) e o ente simplesmente dado (Vorhandenheit), agora, com a questão da técnica, tal caráter não apenas se instalou absolutamente, através da objetificação e produção de tudo o que a natureza "permitir", mas, e principalmente, essa se tornou a única face do ente intramundano, dito agora e apenas ser simplesmente dado.

    O que em Ser e Tempo indicou o fundamento ôntico do manual e que se movia no horizonte da ambiguidade estrutural entre autenticidade (ou propriedade) e decadência ou fuga (impropriedade), revelando o valor ontológico do ente simplesmente dado no manual, incontornável de sua entidade; agora, após a questão da técnica, a meu ver, se revela como o único modo de apresentação do manual: o manual, com o fim da questão da técnica – não apenas o fim do questionamento como tal como correlato do fim da filosofia – se revela como inquestionado, não se questiona mais o manual em seu ser, em sua manualidade, o ente intramundano da manualidade é suplantado pelo ser simplesmente dado. O manual revelado como inquestionado em seu ser ente intramundano, despe ontologicamente o ente intramundano de seu sentido – como ente intramundano – e passa a ser considerado apenas a partir de seu aspecto ôntico: simplesmente dado.

    Podemos ir ainda mais fundo nessa reflexão, que não é simples, e vislumbrar as possíveis consequências para o ser da técnica: entificado com as técnicas calculatórias e teorizantes, o manual é ele mesmo considerado, agora como simples ente, uma matéria-prima. O manual como matéria-prima do pensamento revela a crescente e abrangente produção, inclusive acadêmica que, como academia não apenas produz, mas também reproduz. Há, assim, uma fusão ou indistinção entre o fazer e o pensar: do ponto de vista não apenas prático, mas também teórico, em termos de metodologia, por exemplo, vale mais o saber-fazer. Tomado como paradigma universal – o âmago da lógica cibernética – o modo calculador é produzido e reproduzido nas universidades e nas ciências. Diferentemente da matéria-prima pensada a partir de uma physis grega, a matéria do pensamento já está agora previamente formatada: é matéria e forma do pensamento moderno técnico. Um pensamento que não se pensa a si mesmo, mas se calcula a si mesmo, tornando inviável qualquer questionamento. Inquestionado em suas bases, o modo de pensar calculador se revela como a crescente irreflexão, indicando um possível fim, de proporções teológicas: o inquestionado se torna inquestionável.

    3.1 Da Angústia ao Medo: Pressentimento e Sentimento

    O estar só e lançado no mundo é angustiante. O estar à mercê de um ente assustador é amedrontador. No que a angústia liberta o medo aprisiona. A angústia nos mantém despertos à existência e o medo nos mantém domesticados. Que indivíduo singular tem coragem – o antídoto do medo – contra o monstro[48]tecno-lógico? Quem questiona a técnica como tal? Pessoas se suicidam ao perderem o chão seguro da técnica e, importante frisar, do capital. A existência é insegura mesmo, é perigoso existir. Mas quando quebra uma bolsa de valores, por exemplo, muitos dos que perderam aquilo a que se agarravam se suicidam, ao se darem conta de sua mortalidade. Mortal e só é condição existencial do ser humano como ser-aí: conforme Ser e Tempo, o estar só e lançado no mundo é condição originária de existência do Dasein. Essa solidão ou singularidade (pois somos únicos) a que estamos condenados pode tanto suscitar o sentimento (ou situação) de liberdade como também o sentimento de abandono. E por que não abandonados à nossa liberdade? Na nossa singularidade somos abandonados à liberdade para escolher entre as infinitas possibilidades que o destino nos abre. A existência autêntica exige do homem um reconhecimento de seu estado de singularidade como condição para a liberdade: ser só é o preço pago para ser livre, e o preço pago é, ao mesmo tempo, a "conseqüência" e a condição de possibilidade da liberdade. A liberdade para escolher dentre as possibilidades (destino) envolve responsabilidades por tais escolhas. Assim, a liberdade é condição ontológica de possibilidade de existência: eu só existo porque sou livre; sou livre para experimentar o tempo como temporalidade. Temporalidade é correlato de existencialidade e historicidade.

    A Stimmung fundamental e privilegiada do ser-aí, a angústia, condição prévia para a compreensão, não somente abre o ser-aí para o mundo e para si, como também aponta para algo mais originário e inquietante: o próprio destino[49]do ser-aí. Diante do estranhamento e do sentir-se "deslocado" no mundo, distanciado pela própria angústia, em sua transcendentalidade, o ser-aí existe autenticamente. É sua existência que torna possível ao ser-aí se perguntar pelo sentido do seu ser e pelo ser dos outros entes; em sua abertura constitutiva (o aí do ser-aí) há uma indicação, novamente, do caráter de transcendência[50]do ser-aí. Tudo que é prévio, como a compreensão e a abertura do ser-aí, já o são em uma disposição de afinamento (Stimmung). Tal caráter é o que permite ao ser-aí o distanciamento necessário para se fazer a pergunta fundamental: "por que há o ente e não antes o nada?".

    É sempre numa disposição de afinação que o ser-aí compreende o mundo, ele próprio já se encontra sempre dis-posto, compreendido em uma situação de mundo: o ser-aí sempre está situado no mundo, numa situação de afinação com o mundo. No § 40 de Ser e Tempo, Heidegger nos apresenta a Stimmung fundamental: a angústia. Tal disposição de "humor", ou tonalidade afetiva, é o afinamento privilegiado, pois é o que trás o ser-aí "à tona" novamente, sempre que ele decai, fugindo de si, na impessoalidade e falação decadentes. Na impessoalidade do público e do falatório, é como se o Dasein fugisse de si mesmo, fechando-se. Ao se dar conta de sua Stimmung originária, a angústia, o ser-aí resgata a si mesmo e experimenta a existência originariamente, autenticamente. Não que o ser-aí não esteja sempre angustiado, de fato ele está, ainda que oscilando entre sintonias (Stimmung) diferentes, ele está sempre na angústia, embora fuja dela.

    Por que a angústia é a tonalidade afetiva fundamental? Ela é fundamental porque, num primeiro sentido, a angústia é abertura, ela abre o ser aí não apenas para a existência, mas também para o apelo do ser: somente o ser-aí é capaz de "ouvir" esse apelo. O mundo e os entes intramundanos tocam o ser-aí, exatamente porque o ser-aí é aberto para o mundo, é esse apelo que toca o ser-aí e não o contrário: não é o mundo que toca o ser-aí. Já no § 40 de Ser e Tempo, Heidegger nos dá uma resposta a esta questão: a angústia promove a abertura de possibilidades de existência do ser-aí como ser-no-mundo. No fundo, a angústia é o existencial responsável pelo próprio destino do ser-aí, pois é ela, abrindo possibilidades, que abre a possibilidade fundamental do ser-aí: a possibilidade de poder-ser, ser-no-mundo. O que, a rigor, confere ao ser-aí também um sentido de alteridade, porque, embora o mundo seja meu mundo, ser-no-mundo é também ser-com-os-outros.

    A angústia é a Stimmung fundamental também porque ela abre o ser-aí de modo privilegiado, apontando (ainda que sem direcionamento) para a existência mesma e sua impermanência, sua pendência. Embora o ser-aí seja pendente, o seu fim – a sua morte – é impendente. A impendência da morte, no entanto, não é no sentido de que ela ainda não se realizou como o ainda-não ser simplesmente dado, pelo contrário, esta impendência diz respeito à sua iminência. Se a morte fosse o ainda-não, então seria pendente, à espera de seu fim, e não é este o caso. A impendência da morte consiste em sua iminência: a morte é a possibilidade iminente, impendente e certa. A angústia, como pre-sentimento da morte, no fundo, manifesta o próprio nada. E o nada não pode ser sentido, pode apenas ser pre-sentido. Todos os sentimentos são sentidos, mas a morte mesma jamais se torna sentimento. Quando a morte chega, ela já passou: é impossível experienciá-la. (HEIDEGGER, 2005, p 57).

    Por tudo isso nós sentimos algo e pressentimos nada. Aquilo que sentimos pode ser cuidado e resguardado. Mas sentimos medo também, e esse sentimento deve ser combatido. Sentimos medo das técnicas, medo de sua presença (os negadores da técnica) e de sua supressão (os defensores da técnica). Mas combater o monstro tecnológico é questioná-lo em suas bases quando ele não for mais dócil para nós. Não questionado o monstro da técnica, nós é que nos tornamos dóceis para ele.

    CONCLUSAO
    Este signo, como evento, coloca o ente no extremo abandono do ser e irradia ao mesmo tempo a verdade do ser como seu mais íntimo brilho.[51]

    Olhando para o mundo e para as coisas e, do ponto de vista fenomenológico e cotidiano, é incontornável que sejam simplesmente dadas, não apenas no manual, como menciona Heidegger, mas o ser simplesmente dado é um dos modos de ser. Nessa modalidade de ser o ente intramundano (innerweltlich) pré-temático dá lugar à tematização e às possíveis teorias. Portanto, as ciências teoréticas, todas elas somente são possíveis porque o pré-temático subjaz como sentido e, principalmente, do ponto de vista da efetividade, porque o ser pode ser simplesmente dado ao pensamento – nas ciências. O perigo e o questionamento a ser levantado é quando o modo de ser simplesmente dado se torna o único modo de ser.

    No horizonte do inquestionado surge o último (ou o próximo) deus – inquestionável – da metafísica da presença, representando a consumação da filosofia como metafísica. Consumação aqui entendida como realização e fim. Do mesmo modo, reduzido o pensamento ao modo de pensar técnico e calculador, o solo do inquestionado não somente é fértil e propício ao advento do inquestionável, como também, do ponto de vista político, é ideal para a instalação de ditaduras e totalitarismos.

    O maquínico nunca erra, o erro é atribuído a um erro de cálculo do algoritmo[52]Quando o pensamento calculador não dá conta do desconhecido, não o chama mais mistério, pois o mistério foi banido pela ciência: o misterioso é o ainda-não revelado pela ciência, como o ainda-não ser simplesmente dado. Nesse mesmo sentido, natural e sobrenatural são termos indistinguíveis no bojo da ciência como representante máxima da indiferença ontológica: conhecido e desconhecido, natural e sobrenatural são, respectivamente, termos indiscerníveis. O sobrenatural, indistinto, deve se tornar visível e deve ser explicado pela ciência. O sobrenatural, não mais questionado, se objetifica como natureza: tudo o que permanece inquestionado no pensamento técnico é naturalizado pela "natureza" totalizante - nada pode ficar de fora de seus domínios. Quando o inquestionado se totaliza, então se essencializa como fundamento.

    A incontornabilidade do ser simplesmente dado no manual permanece incontornável, mas não pode permanecer impensada: mesmo o que não se contorna deve ser questionado, sob pena de findar também a filosofia. Partindo do caráter incontornável ao caráter irreversível do ser simplesmente dado, chegamos ao fim do questionamento da técnica como tal. O conceito de irreversibilidade, aqui, não é contrário ao conceito de incontornabilidade, pelo contrário, quando o incontornável se tornar irreversível, podemos dizer que o incontornável se tornou absolutamente incontornável. O fim do questionamento funda a era do inquestionado e o ser, cego em relação ao seu próprio fundamento, se instala como simplesmente e irreversivelmente dado. Manipulatória e dominadora, a técnica se coloca a si mesma como irreversível. Onticamente, da técnica, ao alcançar proporções gigantescas – senão gigantomaníacas – o homem se vê refém.

    Como modo de pensar técnico, somos reféns do impensado; como modo de ser prático (agir) somos reféns do gigantesco. Estamos à mercê da tecno-logia como modo de ser e agir e, correlativamente, como modo de pensar. O incontornável se torna irreversível e inquestionado: o ente da metafísica da presença. A esse fim do questionamento da técnica corresponde o fim do questionamento como tal e representa o triunfo do objeto "evidente" (das ciências) sobre o fenômeno existencial. Em outras palavras, o fim da questão da técnica significa o fim da filosofia, suplantada em seu modo de pensar reflexivo, pelo modo de pensar maquínico: o algoritmo é o novo logos. Mas será que Heidegger tem razão ao dizer que ao "olharmos para o perigo, avistamos o crescimento do que salva"? (HEIDEGGER, 2007, p. 394).

    O pensador é o espelho do mundo: se o mundo não se reflete límpida e transparentemente no pensamento, então o pensamento não é pensamento e o pensador não é pensador. Ao substituir o papel de espelho pelo papel de calculador e determinador da extensão do mundo, o filósofo se descaracteriza a si e ao seu pensamento. Nesse horizonte do pensar, também a filosofia se converte em mais uma concepção de mundo. Como concepção, imagem ou visão de mundo, a filosofia é vista como um bem cultural (HEIDEGGER, 2006a, p. 48). Nessa sedução ao determinismo do cálculo, o encanto filosófico – porque existe o mundo – é substituído pelo encanto maquínico – porque domino o mundo; o encanto da Gestell (maquinação) se mostra como um desencantamento do mundo. E o que desencantou com o mundo? A filosofia.

    A "filosofia", nos moldes do novo paradigma, é também calculatória. Tudo na era da técnica é medido por seu valor instrumental, como meio para fins. Por isso se perguntam os "filósofos" da determinação: qual a utilidade imediata desse modo de pensar filosófico? E eles mesmos respondem: Nenhuma. E não estão errados em sua resposta, pois ao se chegar a essa conclusão há uma completa inversão do modo de pensar. A filosofia que se pensa a si mesma e a seus fundamentos é tomada como delírio ou devaneio; e em seu lugar é exigência geral "clareza e distinção" no pensamento, como correspondente ao objeto aprisionado pelo cálculo. O pensamento é transformado em representação. Mas no extremo desse niilismo maquínico, Heidegger, nas Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) vislumbra a possibilidade de um "trânsito a um outro começo" do pensar. Qual a tarefa desse pensamento e o que seja esse pensamento permanece, ao fim das reflexões do autor, um mistério. Há a indicação de uma possível saída pelo modo de pensar poético. O filósofo aponta uma saída poética, resgatando de certo modo o "caminho da linguagem", como morada do ser. Pois o que há em comum entre a filosofia e a poesia é que ambas são linguagem.

    Inspirado nos versos de Hölderlin, o filósofo da Floresta Negra indica a esperança em uma possibilidade última, quando tudo o mais sucumbiu ao nada da Gestell: lá mesmo, no mais íntimo niilismo gestéltico há a possibilidade de salvação, de um recomeço do pensar, uma superação, que só se abarca por completo no final. Daí a radicalidade do pensamento filosófico. Radical diz na raiz: pensar a raiz é pensar o ser na sua origem. Paradoxalmente, somente se pensa a origem quando se chega ao fim, no fim vislumbra-se o primeiro começo e a sua possível superação. Mas isso é para poucos, nas palavras de Heidegger: para os insólitos. Esses extraordinários que de tempos em tempos perguntam e, ao perguntar, se colocam na posição mais elevada da alma: a solidão indispensável para pensar a nobreza do ser e dizer sua singularidade. (HEIDEGGER, 2006a, p. 28).

    Naturalizada, a técnica permanece impensada, inquestionada. Heidegger levantou a questão da técnica. Quando não mais houver questionamento a fazer sobre a técnica, ela reinará soberana, acima dos homens e dos deuses. E mais, quando o inquestionado se tornar inquestionável, surgirá então o novo deus. Enquanto há o questionamento eu posso reconhecer que o novo deus será o maquínico, a técnica como fundamento onto-teológico, ou mais propriamente ateológico; mas, paradoxalmente, com o advento desse novo deus, seu fundamento permanecerá impensado e, assim, novamente, não o reconhecerei.

    Mas, enquanto não chega esse novo deus, questiono agora, à guisa de conclusão, a comparação que considero definitiva entre Ser e Tempo e A Questão da Técnica. Para explicar minha posição, cito novamente o já mencionado no capítulo 2 deste trabalho:

    [...] O martelar não somente não sabe do caráter instrumental do martelo como se apropriou de tal maneira desse instrumento que uma adequação mais perfeita não seria possível. [...] (HEIDEGGER, 2006b, p. 117).

    O martelar se apropria do martelo (ente intramundano) pre-tematicamente, como ser e sentido do martelo; do mesmo modo, também a técnica, como evento apropriador se apropria pré-conscientemente, da nossa época e, em correspondência, do ser humano. O ser humano é o martelo de que o martelar gestéltico se apropriou. E somente houve esta apropriação porque, na essência, o ser humano corresponde a esse apelo, de modo que "uma adequação mais perfeita não seria possível". Eis o que considero a relação definitiva entre o filósofo de Ser e Tempo e o filósofo após a khere.

    Da incontornabilidade do ser simplesmente dado no manual podemos extrair a exata noção do que o pensador da Floresta Negra chamou de apropriação e comprometimento. Só há apropriação porque, de algum modo, há uma correspondência, na correspondência comprometem-se "causa" e "efeito". Não é óbvia, no entanto, a relação entre o martelar e o calcular. O martelar é um modo de ser de um ente simplesmente dado; já o calcular é um modo de pensar de um ser que não se torna nunca, do ponto de vista existencial, simplesmente dado.

    O absolutamente inquestionado é irreversível porque, no niilismo do não-reconhecimento, ou do esquecimento, não há mais questionamento. O que não é questionado permanece para sempre imutável. Tanto o incontornável não temático no manual, como o tematizado a posteriori, em teorias, são, ambos incontornáveis e correspondem ambos, tal como os funcionários da técnica, ao mesmo apelo gestéltico. O lugar do questionamento é o entre o pré-temático e a sua tematização: é o pensamento da diferença ontológica. Pensar filosoficamente, nesse sentido, é pensar a diferença, não a identidade, nem a semelhança, nem a assimilação. Pensar a diferença é pensar a singularidade que nos distingue absolutamente. Roubar o fogo dos deuses não nos assemelha a eles, nem nos distingue deles. O que nos distingue dos deuses é o fato de nos superarmos a cada vez, como super-homens, tornando-nos a cada vez outros, mas permanecendo os mesmos. Aos deuses, imortais e imutáveis, resta permanecerem sempre os mesmos, e para sempre. Os deuses são incontornável e irreversivelmente dados.

    Uma bomba atômica por si mesma, aparentemente, não indica nenhum perigo. Aparentemente, apenas; porque a finalidade de sua produção é intrinsecamente nefasta. Seu objetivo é a explosão. Parece óbvio e ingênuo dizer isto, mas não é nem óbvio nem ingênuo. A manipulação atômica para fins medicinais, por exemplo, embora seja semelhantemente imprevisível quanto a seus resultados, guarda em si um propósito intrinsecamente bom. A produção da bomba e a possibilidade de fim do mundo são de responsabilidade de todos, funcionários e não-funcionários da técnica estamos todos comprometidos. Inquestionada sua produção, seu crescimento floresce.

    O que está em jogo aqui, em suma, é uma nova concepção de verdade por correspondência ou adequação, não no sentido lógico, mas no sentido ontológico. Do mesmo modo que o martelar se apropriou do martelo, na incontornabilidade do seu ser simplesmente dado no manual, também a maquinação se apropriou do agir e pensar humanos, de tal modo que "uma adequação mais perfeita não seria possível".

    Refletir sobre este tema é questionar o ser humano em sua intimidade mais originária. Ou seja, é questionar o ser humano que, esquecido de seu ser – a Cura – se converte em objeto da representação e na representação.

    O lugar da Cura e seu questionamento em relação a este destino técnico é a tarefa que tomarei no mestrado. Heidegger questionou a técnica, é preciso questionar a Cura, essência do ser-aí. Apropriando-me do pensamento de Luiz Hebeche, questionar a "Cura" é "tornar-me uma questão para mim [mesmo]" (HEBECHE, p. 19). Ao se chegar ao fim do questionamento da técnica, restará então, como possibilidade filosófica, o auto-questionamento. Fazer esse questionamento significa pensar qual o papel do ser humano ou sua "responsabilidade" em relação à técnica e ao perigo extremo engendrado por ambos. Homem e técnica estão necessariamente comprometidos (Verschulden), na mesma relação entre causa e efeito.

    Random_Rampager
    Veterano
    # jan/12
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    The Laughing Madcap
    Cara, na boa que eu espero que isso tenha sido só control c. :)

    Saul Morello
    Veterano
    # jan/12
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    O loco meu o_O

    Die Kunst der Fuge
    Veterano
    # jan/12
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    The Laughing Madcap

    Digno de uma surra de cipó bem caprichada nas pernas, hein?

    Viciado em Guarana
    Veterano
    # jan/12
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    The Laughing Madcap
    Seu fdp! Tem ideia da velocidade que eu tive que girar a porra do scroll do mouse?!

    Die Kunst der Fuge
    Veterano
    # jan/12
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    Viciado em Guarana
    Seu fdp! Tem ideia da velocidade que eu tive que girar a porra do scroll do mouse?!

    Apresento-lhe a tecla "End" do seu teclado.

    Zebreiro
    Veterano
    # jan/12
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    Quanto lixo.

    mateussch
    Veterano
    # jan/12
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    The Laughing Madcap

    Achei o início legal, vou imprimir e ler depois.

    Deftones_Rules
    Veterano
    # jan/12
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    Existe algum programa que transforma texto em áudio mp3??? Por que estou com uma preguiça enorme de ler isso =/

    Atom Heart Mother
    Veterano
    # jan/12
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    The Laughing Madcap
    Tal evento é o que, ao se apropriar também do humano, transformando o existencial em maquínico, reflete o espírito abrangente da apropriação gestéltica.

    Não concordo com essa parte.

    Atom Heart Mother
    Veterano
    # jan/12
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    The Laughing Madcap

    Recomendo que leia:

    A investigação da Ciência do Direito nos remete as bases do pensamento político-filosófico da Grécia Antiga, berço da civilização ocidental. A filosofia do Direito é uma das áreas mais apaixonantes disciplinas para nós operadores desta magnífica Ciência Jurídico-Social, dado o caráter aberto e harmônico, onde a hermenêutica se consagra como a rainha-mãe de toda liberdade investigatória dada á construção semântica do Sistema Central (Constituição) e dos demais Subsistemas (As diversas áreas do Direito), formando um corpo circular que irradia luzes de direitos e deveres do seu núcleo central iluminando todo o ordenamento jurídico.

    [...] Trata-se de um sistema aberto de regras e princípios. Nesse sentido, fica evidente que a interpretação das normas constitucionais não pode ser considerada como uma simples tarefa de execução do comando nelas contido. Trata-se, na verdade, de um processo complexo no qual são utilizados diversos métodos e princípios, e onde o resultado é o mais variado possível. é importante que o intérprete durante o processo de concretização procure alcançar o sentido da norma, tendo em vista as hipóteses que esta abarca, para verificar se o caso concreto encontra-se nela previsto. Está-se, na realidade, destacando os elementos vinculativos entre a norma e a situação fática.1

    O Direito Ambiental configura-se como um "Direito Novo", dado a velocidade do mundo moderno, insuflado pelos desafios do progresso econômico e social, além, dos fatores emergentes de crescimento demográfico e o consumo de bens e serviços, gerados pelo denominado Capitalism Wild, que vêm assombrando as sociedades do Terceiro Milênio e que se configura como uma grande ameaça para a sobrevivência do Homem e do Planeta.

    [...] A revisão das "interpretações consagradas" se torna imprescindível. A finalidade da História vem a ser a compreensão do presente, pois os fatos de hoje são a resultante final do complexo dos fatos anteriores. é o que resumia Napoleão ao dizer: "A educação de uma criança começa cem anos antes de seu nascimento". (...) A Política é como a Física. Não senão uma boa: a experimental. " La Politique est comme la Physique, il n"y em a qu"une de bonne: l" experimentale". A afirmação é de Joseph De Maistre. Mas, poder-se-ia perguntar, onde está o campo de experiência da Política? Responde-nos o mesmo autor: "L" Histoire est la politique experimentale", a História é a política experimental. Vale dizer: não há instituições políticas que correspondam aos anseios dos povos que vivem sob sua tutela senão as consagradas pela história; o contrário também é verdade: as instituições que colidem com as legítimas aspirações nacionais mostram, historicamente, os frutos nefastos que nenhuma argúcia de argumentação conseguirá ocultar. (...) O ilogismo de um " povo soberano de si mesmo", de uma "vontade geral" que é simplesmente a vontade de uma minoria imposta habilmente a uma massa de manobra política, que hoje não quem desconheça, foi com visão de águia detectado por Joseph De Maistre já no início do século XIX. Contemporaneamente, a partir do criticismo Kantiano, com Fichte, Schelling e Savigny, nos Estados Alemães, desenvolvia-se a Teoria do " Volksgeist", " Espírito do Povo", isto é, a teoria do Direito e do Estado com base nas aspirações e na psicologia do povo.2

    A expansão desordenada das economias liberais e as novas sócio-liberais, tanto no Ocidente como no Oriente estão globalizadas e atingem o mundo numa fração de segundos, dado a velocidade da informação e do conhecimento, onde produtos e serviços estão conectados gerando mercados ativos, lastreados pela exportação e importação dos mais diversos produtos.

    O descarte do consumo dos produtos produzidos e comercializados pela indústria para atender as necessidades humanas em todos os aspectos da vida moderna, posicionam-se como a grande problemática ambiental acelerando a poluição e colocando o planeta em situação de "alerta vermelho" sobre os riscos com a saúde do homem e do ecossistema global.

    [...] São vários os elementos que provocam a poluição ambiental, porém, vamos iniciar pelo lixo, que é onde tudo começa. A Organização Mundial de Saúde - OMS define o lixo como qualquer coisa que seu proprietário não quer mais e que não possui valor comercial, sendo descartado pelo mesmo proprietário sem considerar que grande parte dos resíduos ainda possui valor comercial através de reutilização, reciclagem, ou sua reutilização como matéria prima.3

    A falta de consideração com os recursos ambientais na consciência do indivíduo do Século XXI pode ser interpretada em sentido lato, como um costume antigo na formação histórica do homem, dado o descuido educacional de se preparar para o futuro, continuando um pensamento já descartado pela realidade atual, de que a natureza é um "depósito infindo" que pode suportar e digerir como um ralo mecânico todas as "sobras" ou resíduos indesejáveis pelo Ser Humano. Mas, isto não quer dizer, que ele não tenha este "saber dentro de si", de que esta atitude de lapsos momentâneos (viver sem planejar), é mais um golpe desferido contra sua própria carne.

    [...] Na verdade, não se pode negar que, para trazer ao caminho do bem moral um espírito ainda inculto ou degradado, seja necessário prepará-lo, atraindo-o com a perspectiva da vantagem pessoal ou intimidando mediante a ameaça de um dano; mas, apenas esse mecanismo, esse recurso, tenha produzido algum efeito, então há necessidade de mostrar á alma o puro princípio moral de determinação, que, não somente por ser o único que pode fundar um caráter (modo prático e coerente de pensar segundo máximas imutáveis), mas ainda porque ensina o homem a sentir a sua própria dignidade, dá á alma uma força que ele mesmo não esperava, a fim de desfazer-se de toda a dependência sensível, enquanto ela quer ser predominante e encontrar na independência de sua natureza inteligível e na grandeza de alma, a que é destinada, uma grande compensação pelo sacrifício que realiza. Queremos, portanto, demonstrar mediante observações, que cada um pode fazer que essa propriedade do nosso ânimo, essa receptividade de um interesse puro moral e, por conseguinte, a força motriz da representação pura da virtude, quando ela é posta convenientemente no coração humano, é o móbil mais poderoso e, tratando-se da duração e da diligência na observância das máximas morais, o móbil único do bem. 4

    A filosofia ocidental que se baseia no maniqueísmo socrático do bem e do mal é um dos instrumentos eficazes para entendermos esse novo paradigma de (re) construção da Filosofia do Direito em matéria ambiental, evocando o sentido moral e ético da sobrevivência, onde o amor é o parâmetro guia para a renovação da consciência. Aristóteles afirmava que "Sócrates interrogava, mas não respondia".

    [...]Todo o conhecimento já está no interior do homem, porém ele está adormecido, esquecido. Cumpre fazê-lo vir á tona, através de uma provocação que, ao mesmo tempo em que faz emergir o conhecimento verdadeiro, realiza um autêntico ato de purificação da opinião falsa. Segundo Brun, "Sócrates, convida a uma "conversão", a um virar do avesso a si próprio"... O objetivo do diálogo socrático era matar o mestre no discípulo, inocular-lhe o germe da dúvida metódica, do questionamento purgativo, e preparar-lhe o espírito para uma autêntica aprendizagem que, para Sócrates, não era senão uma lembrança daquilo que já se encontrava em nós. Assim, "saber é recordar-se". (...) Assim, não havia lugar para o dogmatismo nem cabia tampouco, ali, o princípio da autoridade. A verdade era uma busca, não algo dado "a priori". O caminho para ela era o da refutação purgativa. Nesse contexto, o mestre não sabia mais que o discípulo. Ele procurava com este o caminho para a verdade.5

    Para que possamos compreender os efeitos é necessário entendermos as causas. A genealogia da palavra Direito no bom vernáculo pode ser traduzida como:

    [...] direito1 di.rei.to1 adj (lat directu) 1. Que segue ou se estende em linha reta; reto; direito: Caminho direito. 2. Que não é curvo: Pau direito. 3. Plano, liso, desempenado: Tábua direita. 4 Vertical, aprumado: A Torre de Pisa não é direita. 5. Diz-se do lado do corpo humano no qual, normalmente, os músculos são mais ágeis e os membros mais destros; da parte simétrica de um órgão duplo, que se acha nesse lado; da parte do coração, que compreende a aurícula e o ventrículo direitos: O fígado está no lado direito do corpo humano. Rim direito. Coração direito. 6 Correto, justo, honrado, íntegro: Homem direito. 7. Justo, razoável, legítimo. Direito2 di.rei.to2 sm 1. O que é justo e conforme com a lei e a justiça. 2. Faculdade legal de praticar ou não praticar um ato. 3. Dir Ciência das normas obrigatórias que disciplinam as relações dos homens numa sociedade; jurisprudência. Possui inúmeras ramificações. 4 Prerrogativa, privilégio. (grifo nosso) (...) 2 Acertadamente: Não pensou direito. D. adjetivo: a) conjunto das leis que estabelecem a forma pela qual se deve fazer valer os direitos; b) conjunto das leis reguladoras dos atos judiciários, também chamado direito judiciário, direito processual. D. administrativo: parte do direito que fixa a organização e determina a competência das autoridades encarregadas de executar a lei, e que indica aos indivíduos os remédios para a defesa de seus direitos contra essas autoridades. D. aéreo: conjunto de normas e preceitos, de caráter internacional, que regulam a navegação e transporte aéreos. D. a um lugar ao sol: alegação de quem espera ou pleiteia algo que a outros é facultado. D. autoral: "direito exclusivo que tem o autor de obra literária, científica ou artística, de a reproduzir e explorar economicamente enquanto viver, transmitindo-o a seus herdeiros e sucessores, com o prazo de sessenta anos, a contar da data de seu falecimento" (Pedro Nunes). D. canônico: a) conjunto de decisões ou cânones emanados dos concílios para o governo da Igreja Católica; b) conjunto das leis eclesiásticas para o governo de uma igreja cristã. D. civil: ramo do direito privado que regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes ás pessoas, aos bens e ás suas relações. Subdivide-se em direito de família, direito das coisas, direito das obrigações e direito das sucessões. D. comercial: complexo de normas que determinam os direitos e deveres referentes ás transações comerciais. D. constitucional: ramo do direito público interno, que trata da organização política do Estado, da sua forma de governo, dos poderes que o constituem, suas funções e atribuições, bem como dos direitos e deveres essenciais do cidadão. D. criminal: parte do direito que define as infrações quer do direito privado, quer do público, e estabelece as sanções correspondentes a cada uma delas. D. das coisas: "complexo de normas que regulam as relações jurídicas existentes entre as pessoas e os bens corpóreos e imateriais, que podem ser objeto de apropriação ou utilização pelo homem" (Pedro Nunes). D. das gentes: conjunto de normas que definem os direitos das nações em suas relações entre si e dos indivíduos em suas relações com Estados estrangeiros ou entre si quando se trata de questões internacionais; também chamado direito internacional. D. das obrigações: "conjunto das relações de direito patrimonial que estabelecem os vínculos de uma pessoa a outra, pelo dever jurídico de dar, fazer ou não fazer qualquer coisa" (Pedro Nunes). D. das sucessões: "complexo de normas que regulam a transmissão do patrimônio da pessoa falecida áquelas a que este deve ser legitimamente atribuído, a qualquer título" (Pedro Nunes). D. de acesso, Inform: permissão para um usuário específico acessar um arquivo ou dado particular. D. de família: "complexo de normas que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, as relações pessoais e econômicas da sociedade conjugal, a dissolução desta, as relações entre pais e filhos, o vínculo do parentesco e os institutos complementares da tutela e da curatela" (Clóvis Beviláqua). D. de propriedade: faculdade que o homem tem, por direito, de aplicar á conservação da sua existência e ao melhoramento de sua condição tudo quanto para esse fim legitimamente adquiriu e de que pode portanto dispor livremente. D. internacional: o mesmo que direito das gentes. D. privado: parte do direito que regula as relações dos indivíduos entre si. D. público: parte do direito que regula as relações entre o Estado e os indivíduos. D. público externo: "o que é compreendido pelo conjunto do direito internacional privado" (Pedro Nunes). D. público interno: "ramo do direito público que regula as relações recíprocas do Estado com seus nacionais, ou com as pessoas particulares, naturais ou jurídicas, localizadas no seu território" (Pedro Nunes). D. romano: sistema legal que regulava as relações jurídicas do povo na Roma antiga. Tem servido de fonte ao direito civil da maioria dos países civilizados. D. substantivo: o que define as relações das pessoas em sociedade, e as submete á sua ação. De direito: com justiça, em virtude da lei, legitimamente. Em direito, em bom direito: conforme as regras do direito, da eqüidade ou da justiça.6

    Sendo o Direito a Ciência das normas obrigatórias que disciplinam as relações dos homens numa sociedade, torna-se devido para o homem racional respeitar o justo, o correto, o que é honrado e integro, conforme os parâmetros determinados pela lei, para que possamos alcançar e concretizar o ideal de justiça na nova sociedade que se apresenta. O Direito ao meio ambiente economicamente sustentável é uma prerrogativa e um direito do homem e da sociedade como um todo. Privilégio este, que já vem de forma congênito-espiritual amalgamado no coração e na alma do Ser Racional antes da concepção, por tratar-se de um direito á vida, presente ou futura, e congregar a natureza em sua própria concepção física e transcendência espiritual.

    [...] Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial á sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e á coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.7

    Partimos da premissa que todo homem "nasce bom" e que depende de como educacionalmente o Estado, a Família e a Sociedade o recepcionam dando-lhe as condições básicas de educação formal, ética e moral, para que ele possa vencer os estágios da ignorância, formando um saber com habilidade intelectual suficiente para entender e "recordar-se de seu saber", utilizando assim, a maiêutica socrática, para em seu processo purificador de convivência social, utilizando da refutação na argumentação dialógica, possa despertar em si ("conhece-te a ti mesmo"), despertando no outro a consciência da sua ignorância sobre os aspectos predatórios e não-preservativos no contato com os recursos ambientais, estimulando-o a realizar uma investigação reconstrutiva para se chegar a uma opinião mais próxima da verdade, da origem da razão e da existência, expelindo o erro do pensamento autodestrutivo de seu contato homem X natureza, na trajetória de sua realização material pelos métodos empregados pela produção e ao se apropriar de forma consciente ou inconsciente dos bens, descartando-os de forma irracional na natureza. Esta tarefa filosófica tem como princípio básico desencadear um processo educacional - civilizatório, elegendo a refutação pelo diálogo como um movimento dinâmico que irá desencadear inúmeros efeitos positivos, intelectuais quanto morais.

    Para adentrarmos a esses aspectos doutrinários da eficácia da norma jurídica constitucional ambiental, tendo como premissa básica a interpretação humanizante, centrada na coesão moral da filosofia desenvolvida por Sócrates, que elege como "centro" o homem de bem e de bom caráter, como elemento irradiador na construção do mundo ideal, é importante que recordemos a gênese dos conceitos que orientam a norma jurídica. A norma jurídica pode ser entendida como uma célula do ordenamento jurídico (corpo sistematizado de regras de conduta, caracterizadas pela coercitividade e imperatividade). Ou seja, um imperativo de conduta, que coage os sujeitos a se comportarem da forma por ela esperada e desejada. A norma jurídica, doutrinariamente pode ser apresentada como dividida em duas partes: Suporte fático ou conduta: que é o conjunto de elementos de fato previstos abstratamente na norma, cuja ocorrência é imprescindível á incidência da regra jurídica no caso concreto; Conseqüência jurídica ou sanção: que estabelece a vantagem (direito subjetivo) a ser conferida a um dos sujeitos da relação, e a desvantagem correlata (dever jurídico) a ser suportada pelo outro, ou outros, sujeitos dessa mesma relação.

    Não é toda norma - jurídica ou não - que implica em uma conduta e uma sanção. Há normas que têm como função orientar ou dificultar certos atos, em sentido estritamente normativo. Como faz o Código Civil ao definir a classificação das coisas.

    Nossa investigação vai se restringir a eficácia das normas constitucionais no plano social, já que nosso posicionamento doutrinário, inclui de forma genérica que a eficácia jurídica da norma (formal e material), está inclusa nos fins que a norma pode produzir em defesa da dignidade da pessoa humana, dado o cárater subjetivo que envolve a efetividade da norma no mundo fático.

    [...] Em tema de eficácia das normas constitucionais, antes de qualquer apresentação, é conveniente estabelecer a correta acepção do que se chama de eficácia jurídica. é que a norma possui duas espécies de eficácia. A eficácia social, também denominada efetividade, que designa o fenômeno da concreta observância da norma no meio social que pretende regular, e a eficácia jurídica, que no dizer de José Antonio da Silva, " designa a qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos de que cogita; nesse sentido, a eficácia diz respeito á aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. O alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade. Esta é, portanto, a medida da extensão em que o objetivo é alcançado, relacionando-se ao produto final".8

    Como operadores do Direito, devemos ter em mente que a norma jurídica constitucional-ambiental tem como condão principal regular as relações entre os atos do agente ou do sujeito e seus aspectos produtivos na regulamentação e manutenção de um ambiente sadio á qualidade de vida do homem, tendo como precípuo básico o bem comum. Para que isto ocorra é necessário partimos de um conceito, que para Sócrates em sua "Maiêutica", possa se tornar imutável e inteligivel e este conceito-universal se transforme numa máxima, na própria essência-objeto da ciência.

    Para que possamos transportar o pensamento socratico para o Direito Ambiental Constitucionalizado, devemos entender a origem e a intenção do legislador na construção do conceito que fez eclodir a letra da Lei, para que possamos adentrar a análise racional dos influxos morais e éticos e sua aplicabilidade no Texto Constitucional, diante do mundo fático.

    [...]Aristóteles resumiu em poucas linhas o socratismo: " Sócrates discutia somente sobre as coisas morais e não se interessava de forma alguma pela natureza; nesse domínio, tinha buscado o universo e foi o primeiro que tomou como objeto de seu pensamento as definições" (Metafísica, I, VI). Em outros termos, tal questão colocar-se-ia da seguinte forma, que apresentamos á guisa de exemplo: o que é mais importante: conhecer as árvores ou a árvore? Conhecer as mesas ou a mesa? Conhecer os vasos ou o vaso? Cada vaso individualmente apresenta particularidades que o tornam diferente de qualquer outro vaso. Há vasos grandes, vasos pequenos, vasos de vidro, vasos de porcelana, vasos novos, vasos antigos. Contudo, ao se comparar vários vasos ou, em outros termos, vários individuos da mesma espécie, retém-se uma única idéia: a de que todos eles têm uma mesma essência. Ao compará-los, ao eliminar-lhes as diferenças individuais, as qualidades mutáveis, e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza ou essência da coisa, estamos deixando o âmbito do particular e atingindo o universal. Para Sócrates, o objeto da ciência não é o sensível, o particular (os vasos, no nosso exemplo), mas sim o inteligível, que é o universal. Não se atinge o universal pela experiência sensível, mas sim pela dialética, que utiliza tão-sómente a razão como instrumento. O particular é objeto de opinião e está, portanto, sujeito ao erro. A refutação elimina o erro que impregna o particular, a falsa opinião que lhe diz respeito, e a maiêutica faz nascer o universal, procede á parturição do conhecimento verdadeiro, do conceito (de conceptum-concebido, parido). O conceito é, pois, o fruto, o término, o desfecho de um processo que dialéticamente leva da multiplicidade á unidade, do relativo ao absoluto, do erro á opinião verdadeira. O conhecimento verdadeiro deve ter unidade, universalidade, deve ter validade sempre. Essa exigência de unidade ou iniversalidade afirma-se num duplo sentido: a respeito dos sujeitos e dos objetos do conhecimento, isto é, afirma-se a possibilidade do conhecimento universal através do acordo com outras consciências, o que somente o diálogo propicia. Se queremos chegar ao universal, ao conceito, á essência, se queremos descobrir o que é que faz o vaso ser um vaso e não uma mesa, devemos estar em sintonia com outras consciências que afirmem a mesma coisa que nós. Sómente assim podemos deixar o particular, a opinião relativa, e chegar a essência, que deve se impor a todos como verdadeira e absoluta.9

    As leis só são aplicáveis ou aplicadas em Direito Ambiental em sentido estrito ou lato (um homem ou vários homens), se não houver por parte do sujeito um conhecimento verdadeiro de seu objeto, e aquele se apropria (usa e abusa) de forma aviltante, sem respeitar o direito do outro, ferindo direitos alheios e em consequência num contexto mais amplo, denigre direitos difusos e sociais, elegendo o interesse particular, acima dos interesses e direitos coletivos.

    Em outras palavras, a norma se transforma em sanção a partir do momento, que o sujeito não tem uma real noção de seu objeto no confronto com o mundo fático, desconhecendo ou querendo desconhecer os conceitos, violando direitos e fugindo dos deveres impostos pela norma jurídica.

    Como desmestificaríamos os conceitos que congregam a norma jurídica ambiental constitucional? Como humanizaríamos os sujeitos (indivíduos) na diversidade do mundo? Todo homem nasce com a mesma essência, e o diálogo coeso e racional levaria da multiplicidade de interesses a uma unidade, pelo acordo das outras consciências, chegando assim, ao conhecimento universal da importância de se respeitar as normas ambientais, como premissa de mantermos viivos e seguros, tornando-se assim uma verdade absoluta na preservação do homem e do planeta?

    O Art. 174, parágrafo 1º. Da Constituição Federal de 1988, positiva que:

    [...]Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Parágrafo 1º. A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.10

    Nota-se que o Texto Constitucional impõe ao Estado deveres intransferíveis como agente normativo e regulador da atividade econômica, devendo ser exercido na forma da lei. A Constituição Federal de 1988 configura como a Lei Suprema de nosso Estado, exigindo que é fator determinante a atuação do mesmo, para o estabelecimento das diretrizes e bases do planejamento e do desenvolvimento nacional equilibrado nos planos nacionais e regionais. Entretanto, os governantes eleitos pelo povo, não vem cumprindo a Lei Maior, se omitindo do dever/poder em garantir os direitos fundamentais em atendimento a dignidade da pessoa humana.

    O Estado não cumprindo seu "dever de casa"; não assumindo suas responsabilidades, compromete em cadeia o compromisso ético e moral do setor privado em cumprir o impositivo legal, retardando o crescimento econômico sustentável e agravando ainda mais, as metas de desenvolvimento social e humano dos cidadãos, o que é ainda mais grave, ferindo os princípios elencados na Consitutição Federal de 1988, na não implantação de políticas públicas pelos governos nas áreas econômicas, sociais e ambientais. Essa foro de ilegalidade em que se encontra o Estado e a Iniciativa Privada situando-se ao afronto das Leis Constitucionais, insere a Nação Brasileira num patamar de abuso moral e ético perante a comunidade interna e externa, descrebilizando conceitualmente a denominação de um Estado Democrático de Direito.

    A indagação que se levanta na justificação da retórica estatal e privada é a seguinte: Falta decoro moral pela individualização de interesses particulares acima dos interesses públicos? Qual seria a técnica instrumental necessária para a viabilização de um acordo nacional para que as leis sejam cumpridas? Qual o sentimento adequado para que possa despertar a consciência ética e moral dos poderes políticos e econômicos constituídos no corpo do Estado e assim, o erro e a ignorância serem suprimidos pela virtude da prática do bom, do bem e do justo, na aplicação dos Pirncípios da Solidariedade Social em favor das classes menos favorecidas? (grifo nosso)

    A Maiêutica Jurídica é a essência da norma constitucional ambiental que contém um conceito inteligível universal e que deve ser interpretada pela sua intenção humanística e dialética, utilizando a razão como instrumento principal para o discernimento de seu real sentido ético e moral, propondo-se o acordo das consciências pelo diálogo entre o publico e o privado, podendo ser aplicado como instrumento de valoração moral a técnica do recurso da Maiêutica Jurídica em qualquer caso concreto, onde os juízos de valores estejam presentes e possam serem aplicados, levando em consideração a atitude negativa do sujeito (homem) frente ao objeto (natureza), denegrindo consciente ou inconsciente os recursos ambientais, em afronto as determinações legais de proteção, seja por ação ou por omissão.

    Parte-se do princípio de que só conseguiremos entender a importância das leis que protegem os recursos ambientais (objeto) como parte constante e essencial para manutenção da vida, a partir do instante que deslocarmos do particular para o universal, onde o homem (sujeito cognoscente), através do processo dialético, a indução, que é um princípio lógico "a priori", entender os conceitos como representações intelectuais e formas abstratas de pensamento, onde as idéias éticas no que concernem ao Direito Ambiental se convertem em realidades objetivas para a satisfação do bem comum.

    Para Sócrates, "não se pode agir racionalmente enquanto se permanecer preso ás opiniões particulares".

    [...]Somente o conceito único é isento de contradições, está acima da relatividade que a multiplicidade implica. Como se pode julgar se uma ação é justa ou injusta se não se sabe o que é justiça? Como se pode fazer uma roda para uma carroça se não se sabe o que é o círculo? Aqui o conceito é o padrão segundo o qual se discute, julga-se; ele é o árbitro que em questões de moral está acima das opiniões particulares, invariável e imparcial. Ele deve valer para todos, em todos os casos, para todo juízo de valor. Sócrates não realizou, propriamente falando, a apresentação de definições verdadeiras, mas sim a refutação das definições errôneas que lhe eram apresentadas. Ele sugeria um caminho para se encontrar a definição verdadeira, em vez de dá-la pronta. 11

    As normas jurídicas ambientais estão constitucionalizadas e congregam conceitos em sua definição mais ampla. O significado e o limite estão determinados pela semântica. São valores verdadeiros e inteligíveis por todos se levarmos em consideração os aspectos éticos e morais que congregam a oração e a lógica dos enunciados legais, á disposição para a interpretação humana.

    [...] Assim, por detrás da ação virtuosa está á idéia de virtude, a virtude que não está relativizada nas concepções individuais; por trás de cada bem, particular, a indução racional percebe o Bem supremo. Outro aspecto fundamental na filosofia de Sócrates é a identificação da felicidade e da virtude com a ciência. As virtudes se identificam com a razão. O reto pensar e o reto agir são coisas inseparáveis. Assim sendo, a virtude é ciência e a ciência é virtude. Afirmou Aristóteles em sua ética a Nicômaco que "Sócrates acreditava que as virtudes identificavam-se com a razão, considerando que todas eram ciências, e até chegava a afirmar, recorrendo á razão, que onde há ciência não pode faltar o domínio de si mesmo, pois ninguém que tenha inteligência age contra o melhor ou, se por acaso o faz, é por ignorância". (Et. Nic., VI, XIII).12

    A lucidez do raciocínio socrático nos faz repensar o Art. 170 caput e inciso VI, da Constituição Federal de 1988.

    [...] A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ( ) ................; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; 13

    Imagina-se que o legislador pátrio utilizou os fundamentos socráticos da virtude ao elaborar o Artigo Constitucional, onde os seus fundamentos estão na valorização do homem, e valorizar o Ser Humano é dar mais valor, é valorar para cima, para a felicidade, para a realização da felicidade com liberdade, sendo a finalidade, a última ratio, assegurar a todos, indistintamente, existência digna, conforme os ditames da justiça social.

    Não há como fugirmos dos princípios e dos valores constitucionais implícitos nas normas. Medida sine qua non que se impõe para o Estado e para o individuo, se consagrando acima tudo como uma norma moral de boa convivência, de respeito mútuo, de vivência racional, para que se possa justificar a própria existência e persuasão do Direito. A educação tem papel fundamental nos Estados Democráticos de Direito, mas, para a realização do Estado de Direito esperado em matéria ambiental, não será suficiente a educação formal; há que se educar o espírito do homem, para que ele possa "retomar sua Atma". A educação do espírito induz a "recordação do bem" nas consciências do mundo da pós-modernidade industrial. O que é bom para mim é bom para o outro; o que quero para mim quer para o outro. O século convida para o despertar da existência racional.

    [...] Em suma, ninguém que conheça o bem há de obrar ações más. O sábio é bom. O sábio não é, para Sócrates, aquele que entendemos por intelectual, mas sim aquele que possui a vida integral do espírito, aquele que atinge em sua vida a perfeição moral. Com efeito, não se estabeleceu para os antigos gregos nenhuma dicotomia (e a mesma era impensável para eles) entre a perfeição intelectual e a perfeição moral. Todas as ações do indivíduo são boas se eticamente justificáveis. Assim, "quem tem a ciência tem a virtude". O filósofo é também o homem virtuoso, que contempla o bem e molda sua ação prática a ele. Deste modo, o bem não deve ser objeto de pura contemplação, mas deve haver uma íntima adesão do espírito a ele, um amor total ao mesmo, que possa nortear os atos do homem, sua ação, sua prática. O bem liberta o homem e move sua ação espiritual e concreta. Assim, a ciência deve manifestar-se na concretude dos atos humanos, no dia-a-dia. 14

    Com o pensamento socrático, a Ciência deixa o podium engendrado pela elucubração dos Deuses do Olimpo e passa a ser realinhada nas fileiras da realidade concreta, convergindo em pensamentos e atos virtuosos na interpretação do bem, retomando de forma definitiva na consciência humana, os princípios e valores que estão presentes diuturnamente no coração do homem e que se apresentam com poder de império no espírito das leis: A natureza se faz viva em mim, e o meu Deus interior que vive em mim, espera a minha coerência em respeitar não as normas do mundo físico por elas existirem; mas sim, as normas que estão presentes e fazem parte da minha concepção genética, emaranhadas no meu corpo e na minha mente, que fazem pulsar o meu espírito, que me traduz em Amor pelo que sou e pelo o que os meus antepassados foram e pelo que serão as gerações posteriores.

    Esse diálogo íntimo socrático "Conhece-te a ti mesmo" é o primeiro pensamento do ator que deve haver na reflexão do grande teatro do homem e sua inter-relação com a natureza. Conhecendo a si mesmo, conhecerá o outro e sua conectividade com o Todo Universal. Sai da interpretação particular, para a interpretação universal da razão da existência humana e do mundo. As normas jurídicas ambientais constitucionalizadas passam a ser um microcosmo de reflexão em relação ao macrocosmo da razão da existência. O homem conhecendo o seu meio ambiente e tendo sabedoria para preservá-la ele não necessitará das sanções impostas pelas leis. Movido pelo bem o homem é libertado dos grilhões da ignorância e será movido pela sua ação espiritual, buscando no mundo concreto, atos de coerência e virtude, recebendo da lei os aplausos, por realizar no mundo fático coisas justas, em consonância com a lei e em harmonia com os bens oferecidos pela natureza.

    4. A MAIÊUTICA JURÍDICA NA APLICAÇÃO DOS PRINCÍPOS E DOS VALORES CONSTITUCIONAIS DA PRECAUÇÃO E PREVENÇÃO COMO PROTEÇÃO DOS BENS AMBIENTAIS NO ESTADO SOCIAL DE DIREITOS
    A Maiêutica Jurídica investiga e propõe uma mudança de paradigma na interpretação das leis ambientais, utilizando dos instrumentos da dialética e do humanismo; e a razão como instrumento principal para se abrir definitivamente ao diálogo entre o público e o privado, em direção ao bem comum. Para que isto se torne possível e se concretize no mundo real, é necessário recordarmos a gênese da existência do Estado, na coerência da matéria e da teoria exposta, que tem como pilar máximo em sua justificação a interpretação dos conceitos.

    [...] Houve no século XIX um publicista do liberalismo - Bastiat - que se dispôs com a mais sutil ironia a pagar o prêmio de cinqüenta mil francos a quem lhe proporcionasse uma definição satisfatória de Estado. Continuava ele aquela atitude pessimista e amarga de Hegel, quando o filósofo máximo do idealismo alemão confessou que entre a natureza e seus mistérios e a sociedade humana e seus problemas, não havia que hesitar quanto ao conhecimento mais fácil da natureza. O mesmo pessimismo perpassa nas palavras de Kelsen, quando adverte que as copiosas acepções emprestadas á expressão Estado embaraçam a precisão do termo, exposto a converter-se num juízo de valor. 15 O Estado como ordem política da Sociedade é conhecido desde a antiguidade aos nossos dias. Todavia nem sempre teve essa denominação, nem tampouco encobriu a mesma realidade. A polis dos gregos ou a civitas e a respublica dos romanos eram vozes que traduziam a idéia de Estado, principalmente pelo aspecto de personificação do vínculo comunitário, de aderência imediata á ordem política e de cidadania.16

    O Estado na visão de Kelsen como "juízo de valor" se aproxima da nossa visão, quando elegemos os princípios e os valores constitucionais que protegem a dignidade da pessoa humana na ordem estabelecida. A gênese conceitual do Estado greco-romano demonstra a posição harmônica do mesmo e seu vínculo representativo, congregando um sistema aberto que impõe a ordem e abarca a cidadania, que se tornam estruturas mestras da razão da sua existência. O Estado sem o homem deixa de ser o que é e não há razão da sua existência.

    O Estado como agente normativo, regulador e fiscalizador detém o poder/dever de orientar as políticas públicas, cumprir em primeira instância, e se necessário for, criar leis para a convivência saudável dos cidadãos, incentivarem a livre iniciativa e a livre concorrência, criando instrumentos efetivos e eficazes para a realização de um desenvolvimento sustentável. A conciliação desses interesses depende das metas traçadas pela política de governos, levando em consideração os aspectos da Soberania e da Segurança Nacional, devendo realizar todas as determinações constitucionais que atendam em primeiro lugar aos interesses coletivos acima dos interesses particulares.

    A Operacionalização prática desses "juízos de valores", contidos na própria essência e na concepção do conceito que deu origem ao Estado, se transformou em braços e membros que constituem o "Corpo Constitucional", que dispõe sobre os direitos e deveres dos cidadãos que congregam a nação brasileira.

    No caso concreto, nosso "juízo de valor" pode ser traduzido quanto ás responsabilidades do Estado e da Iniciativa Privada em respeitarem o Texto Constitucional no que concerne aos Princípios da precaução, prevenção, preservação, conservação e recuperação dos bens ambientais, entendidos, todos aqueles que congregam o Art. 225, seus incisos e parágrafos e de igual valor o Art. 170 da Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988.

    Compõe a natureza do Estado o vínculo comunitário. A palavra é adjetiva de comunidade, do Lat. Communitate que no melhor vernáculo pode ser traduzida como a qualidade do que é comum; comunhão; congregação; sociedade; a totalidade dos cidadãos de um país; etc.

    O que é comum na personificação do Estado (figura de linguagem e objeto inanimado) pode ser entendido como a forma de organização para que os homens (comandantes e comandados) vivessem em comunhão, congregados de forma racional e equilibrada, detendo direitos e obrigações, convivência esta, amparada por lei.

    O Estado configura em sua estrutura uma estratificação e organização política que na formação piramidal distingue os detentores do poder (organização administrativa do Estado) e os cidadãos (povo) que encampa as ordenanças do poder político que se convertem em determinações econômicas, sociais, mercadológica, etc.

    Fica claro que para que se atinjam as metas do Estado Social de Direitos é fundamental que o diálogo entre o público e o privado se torne uma constante, para que as metas de desenvolvimento sustentável saiam do plano teórico e se concretizem em atos práticos, respeitando o interesse público.

    [...] Ela deve também guiar o homem para seus fins supremos. Razão e caráter são coisas inseparáveis. A ciência e a virtude formam uma unidade indissociável. - E crês que quem sabe o que tem de fazer pode julgar que lhe convenha não fazê-lo? Não creio. - E conheces alguém que faça coisas diferentes das que julga que é necessário fazer? - Não. - Então, os que sabem o que as leis ordenam fazem coisas justas.17

    A ética e a moral são um dos pilares da Ciência Política e são valores determinantes em qualquer área do conhecimento humano. Os princípios constitucionais da precaução e da prevenção são instrumentos que um Estado Prudente, utiliza para o planejamento do crescimento econômico em matéria ambiental como prova de seu respeito aos princípios fundamentais de qualquer constituição que tem como meta o desenvolvimento sustentável e a atenção aos direitos humanos.

    [...] Os objetivos reunidos sob os oito capítulos das metas do milênio convergem em direção á perseguição de um objetivo central: a redução pela metade da proporção da população cuja renda é inferior a um dólar por dia, de hoje até 2015. (...) Todo homem de coração e de razão o achará dramaticamente modesto, enquanto, para quem observa a lentidão do estabelecimento dos meios necessários, este será reconhecido como excessivamente ambicioso. (...) No coração desse conjunto de relações sinérgicas, o lugar da água é crucial. No entanto, curiosamente, foi quase por acaso que a água se tornou uma dessas Metas do Milênio. Foi preciso esperar o encontro do desenvolvimento sustentável em setembro de 2002, em Joanesburgo, para que o abastecimento de água lhe fosse acrescentado. Entranho descuido da comunidade dos homens! Basta, no entanto, percorrer com o olhar a lista dos oito objetivos para se dar conta de que a água é essencial á realização de cada um dos outros: se a comunidade internacional fracassar em relação á água, será toda esta estratégia global de redução pela metade da extrema pobreza que fracassará. Como poder-se-ia imaginar que a aceleração das taxas de crescimento econômico dos países em desenvolvimento, a uma taxa da ordem de 7% por ano, graças a um rápido desenvolvimento do investimento privado, pudesse ser obtida, se um esforço considerável para a colocação ao nível de infra-estruturas para a água não foi realizado?18

    O individualismo dos atos praticados pelo homem fica patente nas áreas governamentais no que concernem as políticas públicas em matéria de água, saneamento básico, e do manejo ambientalmente saudável dos resíduos perigosos, incluindo prevenção do tráfico ilícito de resíduos perigosos.

    [...] O controle efetivo da geração, do armazenamento, do tratamento, da reciclagem e reutilização, do transporte, da recuperação e do depósito dos resíduos perigosos é de extrema importância para a saúde do homem, a proteção do meio ambiente, o manejo dos recursos naturais e o desenvolvimento sustentável. Isto requer a cooperação e participação ativas da comunidade internacional, dos governos e da indústria. Para os fins do presente documento, entender-se-á por indústria as grandes empresas industriais, inclusive as empresas transnacionais, e a indústria nacional. A prevenção da geração de resíduos perigosos e a reabilitação dos locais contaminados são os elementos essenciais e ambos exigem conhecimentos, pessoal qualificado, instalações, recursos financeiros e capacidades técnicas e científicas. (...) Existe uma preocupação no plano internacional pelo fato de que parte do movimento internacional dos resíduos perigosos está sendo feito em transgressão á legislação nacional e aos instrumentos internacionais existentes, em detrimento do meio ambiente e da saúde pública de todos os países, especialmente dos países em desenvolvimento. Na seção I da resolução 44/226, de 22 de dezembro de 1989, a Assembléia Geral solicitou a cada uma das comissões regionais que, dentro dos recursos existentes, contribuíssem para a prevenção do tráfico ilícito de produtos e resíduos tóxicos e perigosos, por meio de monitoramento e avaliações regionais desse tráfico e de suas repercussões sobre o meio ambiente e a saúde. A Assembléia solicitou também ás comissões regionais que atuassem em conjunto e cooperassem com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA, tendo em vista manter o monitoramento e a avaliação eficazes e coordenadas do tráfico ilícito de produtos e resíduos tóxicos e perigosos.19

    O desleixo dos governantes em matéria ambiental alerta os operadores do Direito em todo o mundo. As leis não são obedecidas como se deve e as instituições representativas mundiais não conseguem convencer os países sobre a urgência do tratamento que o caso requer. Parece que todos estão dormindo, fazendo pouco caso de forma tosca frente á barbárie da destruição lenta e silenciosa.

    [...] Assim, a ciência torna o homem senhor de si mesmo e a falta dela torna-o escravo das paixões e dos impulsos irracionais. O erro e a culpa são considerados uma carência de ciência ou de sabedoria. Deste modo, "ninguém peca voluntariamente". Nenhum homem há de preferir o mal, conhecendo o bem. A sabedoria assume aqui caráter ativo e não somente contemplativo. O bem pensar leva o homem ao bem viver. Com tal doutrina, Sócrates não definiu o livre-arbítrio, que permite ao homem escolher entre o bem e o mal conforme lhe aprouver. Para Sócrates, a vontade se identifica com a inteligência. Aquele que tem a ciência, a sabedoria, há de querer invariavelmente o bem, há de ser virtuoso.20

    Afirma-se que o papel prático da ciência é educar o homem para despertá-lo da consciência, deixando-o virtuoso frente os desafios do mundo fático. A Ciência do Direito responde renascendo a cada dia para empunhar a sua espada de justiça, onde a sabedoria deixa de ser revestida do bem e passa a ser utilizada como instrumento de opressão, de coação e de escravidão, transformando o homem num refém das paixões individuais e na monopolização dos interesses particulares, seja de homens, de organizações ou de governos déspotas.

    O eloqüente jurista PAULO BONAVIDES nos recorda em sua obra primorosa "Ciência Política" algumas acepções filosóficas, jurídicas e sociológicas de Estado:

    [...] Acepção filosófica: Aos primeiros pertence Hegel, que definiu o Estado como a "realidade da idéia moral", a "substância ética consciente de si mesma", a " manifestação visível da divindade", colocando-o na rotação de seu princípio dialético da Idéia como a síntese do espírito objetivo, o valor social mais alto, que concilia a contradição Família e Sociedade, como instituição acima da qual sobrepaira tão somente o absoluto, em exteriorizações dialéticas, que abrangem a arte, a religião e a filosofia. Acepção jurídica: Em Kant colhe-se acerca do Estado conceito deveras lacunoso, inferior á definição clássica que nos deu do Direito. Com seu formalismo invariável, viu Kant no Estado apenas o ângulo jurídico, ao concebê-lo como "a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito". Acepção sociológica: Com Oswaldo Spengler, Oppenheimer, Duguit e outros o conceito de Estado toma coloração marcadamente sociológica. Ao passo que Spengler surpreende no Estado a História em repouso e na História o Estado em marcha, Oppenheimer considera errôneas todas as definições até então conhecidas de Estado, desde Cícero a Jellinek. O abalizado pensador confessa que o pessimismo sociológico domina os espíritos. O conceito de Estado que elabora está vazado nas influências marxistas de seu pensamento. O Estado, pela origem e pela essência, não passa daquela "instituição social, que um grupo vitorioso impôs a um grupo vencido, com o único fim de organizar o domínio do primeiro sobre o segundo e resguardar-se contra rebeliões intestinas e agressões estrangeiras". O Estado constitucional moderno não se desvinculou na teoria de Oppenheimer de sua índole de organização da violência e de jugo econômico a que uma classe submete outra. Célebre é a passagem em que ele sustenta que, pela forma, esse Estado é coação e pelo conteúdo exploração econômica. A posição sociológica de Duguit com respeito ao Estado não varia consideravelmente da de Oppenheimer. Considera o Estado coletividade que se caracteriza apenas por assinalada e duradoura diferenciação entre fortes e fracos, onde os fortes monopolizam a força, de modo concentrado e organizado. Define o Estado, em sentido geral, como toda sociedade humana na qual há diferenciação entre governantes e governados, e em sentido restrito como "grupo humano fixado em determinado território, onde os mais fortes impõem aos mais fracos sua vontade. Outro jurista-sociólogo do tomo de von jehring desta também no Estado o aspecto coercitivo. Com efeito, diz esse autor que o Estado é simplesmente " a organização social do poder de coerção" ou " a organização da coação social", ou " a sociedade como titular de um poder coercitivo regulado e disciplinado", sendo o Direito por sua vez " a disciplina da coação".21

    O que temos presenciado durante os séculos até os dias de hoje, é que o conceito de Estado por diversos pensadores humanísticos do Direito - fica adstrita a imagem do Estado-Padrasto que coage e pune, utilizando seus poderes de império, lastreado nos instrumentos de sua competência, que de forma inversa daquilo que seu conceito exprime (regulador e disciplinador), se transforma num poder monopolista de representantes do povo, sustentando no exercício de seus poderes, interesses particulares de um grupo (fortes) em detrimento dos reais detentores dos direitos da maioria (povo), protegidos pelo " manto invisível da impunidade".

    [...] Essa indissociabilidade entre a ciência e a virtude é um traço que se manteve quase indefectível no pensamento grego; sabe-se, outrossim, que ele foi uma herança pitagórica que, sendo legada a Sócrates, chegou através de Platão, que instituiu a figura do rei-filósofo, o único apto a governar a pólis com justiça, pois era o único que a conhecia. Assim, a moral socrática foi caracterizada por essa indissociabilidade entre saber e virtude. Contudo, não foi esse o único traço caracterizador da moral socrática. Ele reconheceu a existência de uma lei natural, independente do arbítrio humano, universal, expressão da vontade divina proclamada pela voz interna da consciência, pelo daimon interior. 22

    O Poder Legislativo deve ser virtuoso, O Poder Executivo deve ser virtuoso e o Poder Judiciário deve ser virtuoso. Os homens devem ser virtuosos no domínio de suas ciências: de Legislar, de Executar e de Julgar. A concretização da justiça ampla e irrestrita depende da conexão indissociável entre saber e virtude que está ancorada na moral e na ética de ser e de viver. O daimon socrático está dentro de cada um e é uma vontade natural que não deve ser substituída pela vontade do erro, da ignorância - contrárias as leis interiores que são invioláveis no coração e no espírito dos homens.

    O Estado Social de Direitos depende dessa mudança de paradigma na conduta humana, para mudar os conceitos pré-estabelecidos de como o homem vê o homem na sua individualidade, para alcançar o sentimento solidário e a sua sede de justiça, sufocada e naufragada no seu interior, já que depende simplesmente de um "recordar-se", de uma "parturição" de um novo "Eu" - criando novos Direitos e uma nova Política para o homem pós-moderno. Se assim, não for, estaremos condenados aos mesmos erros, fruto da falta de diálogo e da ignorância dos "pólos de poder" que preferem a autodestruição a (re) construção coletiva de um novo

    Atom Heart Mother
    Veterano
    # jan/12
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    The Laughing Madcap

    Essa é boa também:

    Michel Foucault traça, no livro As palavras e as coisas, uma análise da constituição das ciências humanas partindo da idéia de que, na verdade, toda a continuidade ao nível das idéias representa apenas um efeito de superfície. Em um nível mais profundo - o arqueológico – observa-se que ocorreu uma mudança no século XIX: as ciências humanas passam a ser tratadas do ponto de vista da descontinuidade porque pressupõem a idéia de representação.
    A representação, porém, não é, simplesmente, um objeto para as consciências humanas, mas, como se acaba de ver, o próprio campo das ciências humanas, e em toda a sua extensão; ela é o soco geral dessa forma de saber, aquilo que a torna possível (idem, p. 472)

    Segundo o autor, o ser humano não tem história:

    uma vez que ele fala, trabalha e vive, acha-se, no seu próprio ser, inteiramente misturado a historias que não lhe são nem subordinadas nem homogêneas. Pela fragmentação do espaço por onde se estendia continuamente o saber clássico, pelo enrolamento de cada domínio, assim libertado, sobre o seu próprio devir, o homem que surge no inicio do século XIX é um ser "desistoricizado" (idem, p. 478-479)

    Ora, segundo Roberto Machado, a tese de Foucault evidencia que as ciências empíricas e a filosofia podem explicar o aparecimento desse conjunto de discursos denominados ciências humanas porque é com elas que o homem passa a desempenhar duas funções diferentes e complementares no âmbito do saber:

    por um lado, é parte das coisas empíricas, na medida em que vida, trabalho e linguagem, são objetos – objetos das ciências empíricas – que manifestam uma atividade humana; por outro lado, o homem – na filosofia – aparece como fundamento, como aquilo que torna possível aquele saber. O fato de o homem desempenhar duas funções no saber da modernidade, isto é, sua existência como coisa empírica e, como fundamento filosófico é chamado por Foucault de a priori histórico, e é ele que explica o aparecimento das ciências humanas, isto é, do homem, considerado não mais como objeto ou sujeito, mas como representação (MACHADO, 1981, p. 124-125)

    Portanto, há duas perspectivas: uma que entende o homem como objeto e outra que entende o homem como sujeito de conhecimento. Desta forma, o homem desempenha uma dupla função no saber moderno – sujeito e objeto -, e é justamente essa duplicidade que constitui o a priori histórico que explica o aparecimento das ciências humanas e as formas jurídicas.

    Basicamente, a arqueologia tem o propósito de descrever a constituição do campo, entendendo-o como uma rede formada na inter-relação dos diversos saberes. E é exatamente nesta rede que se abre o espaço de possibilidade para a emergência do discurso. Para Roberto Machado,

    a riqueza do método arqueológico é ser um instrumento capaz de refletir sobre as ciências do homem enquanto saberes – investigando suas condições de existência através da analise do que dizem, como dizem e por que dizem – neutralizando a questão de sua cientificidade e escapando assim do desafio impossível da recorrência, sem, no entanto, abandonar a exigência de realizar uma análise conceitual capaz de estabelecer descontinuidades, não certamente epistemológicas, mas arqueológicas, isto é, situadas ao nível dos saberes (idem, p. 11)

    A genealogia, por sua vez, busca a configuração das positividades dos saberes a partir das condições de possibilidades externas a eles próprios; ou seja, considera-os como elementos de natureza essencialmente estratégica. Procura-se a explicação dos fatores que interferem na sua emergência e adequação ao campo discursivo, defendendo sua existência como elementos de poder. Para Roberto Machado,

    O objetivo da genealogia é neutralizar a idéia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas condições particulares de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal e da ideologia de um conhecimento em que o sujeito tem sua relação com a verdade perturbada, obscurecida, velada pelas condições de existência. Todo conhecimento, seja ele cientifico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político. E isso não porque cai nas malhas do Estado e é apropriado por ele, que dele se serve como instrumento de dominação, desvirtuando seu núcleo essencial de racionalidade. Mas porque todo saber tem sua gênese em relações de poder (idem, p. 198-199)

    De fato, a arqueologia e a genealogia são dois conjuntos complementares e inseparáveis: de um lado, as formas da seleção, adequação ou exclusão operam submetendo o discurso ao controle; de outro, este dá sustentação à análise da proveniência, que deve levar em conta os mecanismos e estratégias postos em prática nas relações de força e, principalmente, os limites e regras que emergem deste dispositivo de poder e se objetivam através das regularidades discursivas que delimitam o espaço de existência do discurso.

    Assim, Foucault entende a genealogia como uma atividade de investigação árdua, que procura os indícios nos fatos desconsiderados, desvalorizados e mesmo apagados pela história "oficial". A genealogia é uma verdadeira sociologia do não-dito em relação ao dito Segundo o autor,

    O historiador não deve temer as mesquinharias, pois foi de mesquinharia em mesquinharia, de pequena em pequena coisa, que finalmente as grandes coisas se formaram. À solenidade de origem, é necessário opor, em bom método histórico, a pequenez meticulosa e inconfessável dessas fabricações, dessas invenções (FOUCAULT, 1999, p. 16)

    A genealogia requer, então, a busca da singularidade dos acontecimentos, fazendo emergir os espaços excluídos ou esquecidos pelo discurso "verdadeiro". Trata-se, nesta análise, de considerar os saberes locais - não legitimados ou valorizados pelo discurso verdadeiro - que, ao ocupar um lugar qualificado como científico, ordena, hierarquiza, classifica os diversos saberes. Advém, daqui, toda a idéia de considerar o pluralismo jurídico presente na sociedade contemporânea, que preconiza que para além do direito oficial há esferas na própria sociedade que também são responsáveis pela produção de direitos particulares. Neste sentido, o Estado não é o único ou exclusivo produtor de direitos (apesar de formalmente o ser), pois a proposta pluralista admite que há uma diversidade de centros produtores, entendendo "direito" no sentido mais amplo do termo.

    A genealogia pode e deve escutar a história, pois

    A história, com suas intensidades, seus desfalecimentos , seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir. É preciso ser metafísico para lhe procurar uma alma na idealidade longínqua da origem (FOUCAULT, 2004, p. 20)

    É mister, então, observar os acasos e as descontinuidades, pois se há algum segredo a desvendar, é que as coisas não têm essência. Neste sentido, a sua suposta essência foi construída a partir de situações especificas contextualizadas histórica e socialmente. Foucault com esta afirmação dialoga diretamente com os jusnaturalistas, desvendando e condenando a idéia de direito natural e inaugurando a idéia de um direito construído socialmente por relações de poder. Deste modo, a genealogia propõe evidenciar os acidentes e os acasos, na medida em que não existe uma História, mas sim histórias; da mesma forma que não existe Direito, mas direitos.

    A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da "origem" (idem, p. 16)

    Neste sentido, em contraposição a essa história tradicional que busca na origem das coisas a sua razão, temos uma história efetiva que vê as coisas sob o ponto de vista da descontinuidade, dos descompassos, isto é, do poder. A história é efetiva na medida em que todo saber sempre é perspectivo, ou seja, parte de um determinado ângulo e, de forma deliberada, movimenta-se com o fim de apreciar e avaliar. Basicamente, este olhar sabe para o que olha, assim como sabe o lugar de onde olha. Um exemplo interessante dessa arbitrariedade do olhar diz respeito ao fato de na Inglaterra existirem mais leis de proteção à propriedade do que de direitos humanos, o que denota que o direito reflete justamente a inclinação de poderes e interesses presentes em sua produção.

    Mais precisamente, a efetividade da história consiste no fato dela introduzir o descontínuo em seu próprio ser, em seu próprio processo, pois

    a história "efetiva" olha para o mais próximo, mas para dele se separar bruscamente e se apoderar à distância (olha semelhante ao do médico que mergulha para diagnosticar e dizer a diferença). O sentido histórico está muito mais próximo da medicina do que da filosofia (idem, p. 29)

    Michel Foucault, em sua análise sobre verdade e conhecimento, parte do princípio de que não há uma relação necessária entre o conhecimento e as coisas a conhecer, ou seja, o que se sabe a respeito de algo não é próprio de sua essência. O conhecimento não faz parte da natureza humana e, então, não é algo que diz respeito à essência do homem; o conhecimento é algo inventado. Assim, "o conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, assim como ele não é natural, é contra-natural" (FOUCAULT, 1999, p. 17). Logo, temos "uma natureza humana, um mundo, e algo entre os dois que se chama o conhecimento, não havendo entre eles nenhuma afinidade, semelhança ou mesmo elos de natureza" (idem, p. 18). Da mesma forma, o conhecimento produzido no campo do direito não é algo supra-social ou natural.

    Por não fazer parte da natureza humana, o próprio conhecimento também não pressupõe uma relação de afinidade ou semelhança com as coisas; ao contrário, o conhecimento exprime relações de poder e dominação, as quais desmistificam a idéia de algo unificado. Por essa razão, Foucault ironicamente afirma que, caso desejemos saber efetivamente o que é o conhecimento, devemos nos aproximar dos políticos, e não dos filósofos, haja vista que a política pressupõe entrechoques de poder e é a partir da política que se constrói o direito.

    Na verdade, "o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate" (FOUCAULT, 2004, p. 18). Portanto, é através do embate de instintos que se chega a um compromisso, a algo inventado chamado conhecimento. O próprio discurso "não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos". (FOUCAULT, 2005)

    Assim, o conhecimento nada mais é do que um produto de relações de luta. Foucault procura evidenciar que existe uma história da verdade e que, portanto, ela também é inventada, é produto de relações de poder. Da mesma forma, como vimos, "uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tem posto ao saber humano" (FOUCAULT, 1987, p. 501), ou seja, o homem também foi inventado. Portanto, a própria idéia de direitos do homem passa de algo universal para algo situado historicamente e potencialmente relativizável.

    Como vimos, Foucault parte do princípio de que não há nenhuma essência humana, assim como não existe nenhuma verdade transcendente, pois toda hermenêutica pressupõe uma verdade a ser mostrada por um suposto saber. Da mesma forma, noções como as de unidade e identidade, quando confrontadas com a proposta de Nietzsche, ficam diluídas por suporem sempre um pretenso Eu. Para o autor, os "discursos devem ser tratados como práticas descontínuas que se cruzam, que às vezes se justapõem, mas que também se ignoram ou se excluem" (FOUCAULT, 2005). Ademais, um verdadeiro discurso não pode reconhecer, evidenciar ou exprimir a vontade de verdade que lhe permeia; ele deve, desde o início, mostrar-se como algo unívoco, o que denota o seu caráter excludente. Na teoria da argumentação jurídica a proposta de Foucault ganha força, na medida em que o argumento jurídico nem sempre está vinculado aos fatos ou ao mundo do direito. Por vezes, funciona como argumento retórico que visa única e exclusivamente a adesão do interlocutor.

    Neste sentido, o conhecimento como derivado da vontade de saber é uma construção que resulta não de instintos básicos ou naturais, mas de confrontos, onde cada instinto deseja instituir como norma universal a sua perspectiva particular. O ato discursivo, nesta perspectiva, sempre se impõe, Interpretar, por sua vez, não é apenas encontrar um significado comum e universal para determinado signo; mas, principalmente, imprimir e produzir uma verdade que submete o outro.

    Isso justifica o fato da genealogia visar a análise do poder em seu contexto prático - que está ligado às condições que permitiram sua emergência - fazendo a análise histórica das condições políticas de possibilidade dos discursos. Em suma, a genealogia não busca a origem, mas a proveniência:

    A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo (FOUCAULT, 2004, p. 21)

    Da mesma forma que os discursos estão permeados por relações descontínuas, a interpretação (dentre elas, a jurídica) também se encontra permeada por relações de poder. Segundo Foucault, a sociedade se constitui na medida em que instaura a violência dentro de seu sistema de regras, e prossegue a dominação de forma institucionalizada. Portanto,

    O grande jogo da historia será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para perverte-las, utiliza-las ao inverso e volta-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo,o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras (idem, p. 25-26)

    Ora, se interpretar é se apoderar por violência de um sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe impor uma direção, então o caminho da humanidade é uma série de interpretações. Em decorrência disto,

    se a interpretação nunca pode se concluir, é muito simplesmente porque nada há a interpretar. Nada há de absolutamente primeira a interpretar, pois no fundo tudo já é interpretação; cada signo é nele mesmo não a coisa que se oferece à interpretação, mas interpretação de outros signos (FOUCAULT, 2000, p. 47)

    Em A Verdade e das Formas Jurídicas, Foucault realiza uma análise sobre a constituição do direito. Basicamente, traz um resgate das formas jurídicas que emergiram ao longo da história, realizando uma reconstituição de como o direito foi passando da idéia de justiça privada para a de justiça pública. Deve-se dizer, inicialmente, que o direito brasileiro recebe influencia direta do direito romano-germânico, o mesmo que influenciou o ordenamento jurídico da França, país de Foucault. Portanto a análise sociológica que este autor realiza, pode-se dizer, é diretamente aplicável ao nosso ordenamento, o que acentua a relevância do tema do direito para os estudos de sociólogos brasileiros. Vejamos uma premissa de Foucault:

    O Direito Germânico não opõe dessa luta a guerra à justiça, não identifica justiça e paz. Mas, ao contrário, supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear os atos de vingança. O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra (FOUCAULT, 1999, p. 56-57)

    Desta forma, o direito é essencialmente o espaço do conflito, que se desenrola de forma institucionalizada e mediante alguns procedimentos comuns às partes em litígio. Segundo Foucault, "Entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas matá-lo segundo certas regras, certas formas" (idem, p. 57). Temos, então, o direito como a manifestação institucionalizada da guerra; entretanto não se trata de uma guerra que produz danos físicos a outrem, mas sim uma guerra de procedimentos, de argumentos, de fatos, de direitos.

    Na guerra o vencedor é nitidamente visível, pois é aquele que sobrevive à luta. No direito não há como determinar o vencedor a partir das duas partes, pois estamos no embate de duas verdades. Então, faz-se mister uma terceira pessoa, alheia à controvérsia, que servirá como mediadora e, em seguida, proferirá um veredicto sobre qual verdade prevaleceu. Observe que não se trata de determinar qual verdade é efetivamente verdadeira, mas sim de determinar qual verdade efetivamente prevalece.

    Neste sentido, os indivíduos não terão mais o direito de resolver seus litígios, pois será um poder exterior a eles que se imporá:

    O soberano, o poder político vêm, desta forma, dublar e, pouco a pouco, substituir a vítima. Este fenômeno, absolutamente novo, vai permitir ao poder político apossar-se dos procedimentos judiciários. O procurador, portanto, se apresenta como o representante do soberano lesado pelo dano. [...] Assim, na noção de crime, a velha noção de dano será substituída pela de infração. A infração não é um dano cometido por um individuo contra outro; é uma ofensa ou lesão de um individuo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano (idem, p. 66)

    Em outras palavras, o soberano (em sentido amplo entendido também como o Estado) é não somente a parte lesada, mas a que exige reparação. A lesão simbólica ao soberano é comparável à comissão de um pecado, o qual deve receber a devida sanção.

    Nota-se, assim, que a partir da possibilidade de um terceiro resolver a contenda entre as partes, e a partir da possibilidade do crime lesar o soberano, ocorre uma mudança na concepção de justiça. De uma justiça privada a qual não pressupunha um poder exterior, temos uma justiça pública que é realizada pelo terceiro alheio ao litígio e que detém a legitimidade para tal.

    Essa transição do privado para o público se dá principalmente através da apropriação pelo soberano dos procedimentos e mecanismos de resolução de conflitos. A publicização do direito, portanto, se dá na medida em que ocorre a concentração da produção do direito nas mãos do soberano. E o agente que permite essa publicização é o procurador, que se encarregava de levar o direito às partes através de visitas periódicas, servindo como a extensão capilar do poder soberano. O principal procedimento adotado pelo procurador era o inquérito.

    O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício de poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e determinações econômico-políticas (idem, p. 78)

    Ou seja, é a partir do inquérito que se torna possível o embate de verdades institucionalizado, procedimentalizado e regulamentado. Neste sentido, a conclusão do inquérito funciona como uma forma de dizer qual a verdade prevaleceu naquele litígio e diante daquelas circunstâncias, produzindo um saber-poder. É saber porque é fruto do embate de verdades; é poder porque impõe qual da verdades deve prevalecer de forma coercitiva. O direito, assim, é permeado por relações de poder que buscam através do embate de verdades, uma solução comum designada por um terceiro. Daí resulta a importância do discurso e da hermenêutica como formas de persuasão.

    A importância do pensamento de Foucault reside na desconstrução da idéia de verdade unívoca ao apontar a verdade como uma produção histórica e social, indicando a multiplicidade e heterogeneidade presentes nos diferentes objetos. Com isso, nega-se a possibilidade de apreendê-los de forma objetiva e neutra, e coloca-se em xeque qualquer conhecimento que se diz baseado em uma verdade, seja ela revelada ou apreendida da "realidade".

    Mais propriamente, as práticas consideradas científicas afirmam que devem se resguardar das misturas, das impurezas e poluições que estão ao seu redor e circulam pelo mundo. Para Foucault a aposta é nas multiplicidades, nas práticas sociais como produtoras dos objetos, saberes e sujeitos que estão no mundo. Aposta-se na possibilidade da criação e da invenção e na provisoriedade das coisas.

    O autor inclusive radicaliza essa idéia ao afirmar que o próprio homem foi inventado. Vejamos, como exemplo, a última frase do livro As palavras e as coisas: "então pode-se apostar que o homem se desvaneceria, como à beira do mar um rosto de areia" (FOUCAULT, 1987, p. 502).

    A situação se mostra da seguinte forma: temos um desenho na areia – um rosto – que some na medida em que a água do mar passa sobre ele, já que está desenhado na areia. Foucault compara este rosto ao homem, isto é, o homem é visto como algo efêmero, descentrado, contido à sua condição de produto histórico. Neste sentido, o autor demonstra que o homem tem uma localização na história, e por isso não faz parte de qualquer essência ou metafísica e, por conseqüência, não se pode falar em direitos universais do homem.

    Ademais, o pensamento de Foucault contribui decisivamente para uma atitude de estranhamento das instituições, procedimentos e conteúdos jurídicos existentes, na medida em que demonstra que toda e qualquer relação social está baseada em relações de poder. Ou seja, o social está intimamente relacionado ao poder, e portanto o direito, enquanto fruto social, reflete esta relação assimétrica.

    Da mesma forma, a sua concepção de hermenêutica e verdade atua decisivamente para descaracterizar o discurso jurídico como um discurso imparcial, isento e universal. Fica evidente que as formas e os discursos sobre o direito estão relacionados a práticas de poder concretas do seio social que vão influenciar a sua produção.

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