El Musicista
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# dez/08 · Editado por: El Musicista
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Quarenta e quatro, bico largo
Em solidariedade ao colega de profissão Muntazer Al-Zaidi, que emprestou tão inusitada função social ao trabalho de repórter, eu elaborei uma lista de doze sapatadas virtuais que gostaria de aplicar neste final de ano.
Maurício Thuswohl
Os atos históricos parecem coisa do passado. Nos dias atuais, onde tudo é devorado e vomitado pela mídia e pelo mercado de consumo com velocidade impressionante, pouquíssimos gestos, palavras ou imagens adquirem força simbólica suficiente para marcar corações e mentes e entrar para a história. Por outro lado, o desenvolvimento das telecomunicações, aliado a essa mesma velocidade, torna possível, nestes loucos dias em que vivemos, que um par de sapatos se transforme de uma hora para outra em instrumento de contestação da hegemonia mundial.
O Conselho Judicial Superior do Iraque anunciou esta semana que o jornalista Muntazer Al-Zaid, funcionário da emissora de tevê independente Al-Baghdadia, será julgado no dia 31 de dezembro por ter atirado seus sapatos em direção ao rosto do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, durante uma entrevista coletiva realizada em Bagdá. O caso será analisado por uma comissão formada por três juízes. Indiciado por agressão a um chefe de estado estrangeiro, Al-Zaidi, se condenado, poderá pegar, segundo as leis de seu país, de dois a quinze anos de prisão e iniciar 2009 na cadeia.
O jornalista, que recebeu uma coronhada de fuzil no rosto ainda na sala de entrevistas, está levemente ferido, segundo um irmão, Uday, que foi visitá-lo no local onde se encontra detido. Além do machucado na cabeça, que lhe rendeu um dente quebrado, Al-Zaidi apresenta, segundo o depoimento, arranhões e hematomas por todo o corpo. Ainda assim, o jornalista pediu desculpas ao primeiro-ministro do Iraque, Nouri Al-Maliki, por o haver constrangido perante o mundo. Os pedidos de desculpa, no entanto, não se estendem ao presidente Bush.
O corajoso Al-Zaidi, de acordo com seu irmão, está se sentindo no lucro, pois tinha certeza de que seria baleado de forma letal pelos seguranças assim que atirasse o primeiro sapato. "Ele me contou que não esperava ter tempo nem para atirar o segundo sapato", disse Uday. Outro fator que certamente anima o jornalista é a certeza de que nenhuma autoridade do mundo islâmico irá se arriscar a impor uma pena pesada ao mais novo herói muçulmano. Milhares de manifestantes já demonstraram nas ruas de diversos países seu apoio ao iraquiano, sem falar nos quase dois mil advogados de diversas nacionalidades que já se ofereceram para o defender de graça.
No mesmo dia em que foi anunciada a data do julgamento de Al-Zaidi, o empresário turco Ramazan Baydan, fabricante dos sapatos arremessados pelo jornalista, afirmou à imprensa já ter recebido, após o tiro ao alvo em Bush, cerca de 300 mil novos pedidos do produto. Antes batizado como Código 271, o modelo passou a se chamar Sapato de Bush. O par é vendido a US$ 27 e, segundo Baydan, passará a ser produzido em maior escala para atender aos pedidos do exterior. Para compensar o lucro, o empresário avisa que se compromete a fornecer sapatos para Al-Zaidi e sua família por toda a vida. Vivemos mesmo em uma época onde intenção política legítima, negócios e marketing se confundem.
Em solidariedade ao colega de profissão Muntazer Al-Zaidi, que emprestou tão inusitada função social ao trabalho de repórter, eu elaborei uma lista de doze sapatadas virtuais que gostaria de aplicar neste final de ano:
1) Para começar, sapatada no próprio Bush, é claro, pelos assassinatos no Iraque, no Afeganistão e em Guantánamo, pelas mentiras e pela ganância dos chacais que compõem seu governo. Além de mim, certamente se juntam ao gesto de Al-Zaidi os familiares dos mais de cinco mil militares dos EUA mortos durante sua administração e os familiares das dezenas de milhares de civis iraquianos e afegãos que já pereceram nos dois conflitos.
2) Sapatada na indústria bélica e em suas conexões dentro dos mais diversos governos, uma máfia que lucra milhões de dólares anuais às custas da produção e venda (muitas vezes ilegal) dos diversos tipos de arma que trazem sofrimento e morte para as populações mais vulneráveis do planeta.
3) Sapatada em parte da elite brasileira, refletida na mídia, que abomina a integração latino-americana e faz de tudo para desqualificar um processo que representa um passo histórico para a emancipação política e econômica do continente. Esta sapatada se estende às elites dos outros países.
4) Sapatada no ganancioso setor industrial da biotecnologia, que coloca suas expectativas de crescimento e lucro à frente dos cuidados com a saúde humana e do meio ambiente e se articula para transformar bens universais como água, sementes e alimentos em mercadorias patenteadas.
5) Sapatada na igualmente gananciosa indústria farmacêutica, que prioriza lucros e vendas em detrimento da busca por soluções concretas para doenças e epidemias que devastam a humanidade. Esta sapatada é dada também pelos familiares dos milhões de africanos que, abandonados à própria sorte, já sucumbiram por falta de tratamento adequado a doenças como a Aids, entre outras.
6) Sapatada no retrógrado agronegócio brasileiro que, sob roupagem e discurso de modernidade, promove a concentração de renda e o atraso social no campo e impede maiores avanços do governo no fortalecimento da agricultura familiar, além de contribuir para a temerária propagação dos transgênicos e para o desmatamento da Amazônia.
7) Sapatada nas máfias que controlam o futebol e os esportes olímpicos no Brasil e que se preparam para dar início a um festival com o dinheiro público e privado que será utilizado na organização da Copa do Mundo e, eventualmente, das Olimpíadas. Esta sapatada certamente é a mais concorrida, pois a ela juntam-se as torcidas de todos os clubes brasileiros, que não agüentam mais ver o êxodo de centenas de jogadores a cada ano (em 2008 foram mais de mil) enquanto nosso futebol vai de mal a pior dentro e fora das quatro linhas.
8) Sapatada nos empresários dos ramos de distribuição e exibição cinematográfica, que dão excessivo espaço para porcarias produzidas nos EUA e estão começando a sufocar a retomada do cinema brasileiro. Esta sapatada segue também para os que lidam com a arte e com atividades culturais apenas pensando no lucro e para os idiotas de todos os tipos que consomem lixo cultural e não desenvolvem pensamento crítico sobre o que lhes é imposto pela mídia.
9) Sapatada em todas as pessoas e empresas que ignoram o problema apresentado à humanidade pelo aquecimento global e continuam a pautar sua produção e/ou seu consumo pela lógica do desperdício dos recursos naturais e do acúmulo incessante e desenfreado de bens materiais.
10) Sapatada no lento, ineficiente e corrupto Poder Judiciário brasileiro que, ao que parece, será o último setor da sociedade a se abrir para as transformações em curso no país. Sapatada naqueles que julgam, defendem ou acusam com dois pesos e duas medidas e naqueles que prendem pichadores e ladrões de galinha e soltam assassinos e banqueiros corruptos.
11) Sapatada nos bandidos, policiais, autoridades e governantes que lucram com a insegurança pública, dando força e alento a atividades destruidoras da juventude brasileira, como tráfico de drogas e armas, prostituição, jogo e transportes ilegais e contrabando. Sapatada na polícia assassina de pobres e nos traficantes que aterrorizam as comunidades.
12) Sapatada em todos aqueles que, às vésperas de 2009, ainda alimentam preconceitos de cor, raça, etnia, gênero, credo, de orientação sexual ou política, de cunho social, cultural ou religioso. Sapatada (para acordar) nos que ainda não perceberam que nossa passagem por aqui só tem valor se estiver ancorada no respeito às diferenças, no compartilhamento das culturas, na compaixão e na solidariedade.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=405 9
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