Johnny Favorite Veterano |
# dez/06
Lealdade
Quando cheguei à TV Globo, em 1995, eu tinha mais cabelo, mais
esperança, e também mais ilusões. Perdi boa parte do primeiro e das
últimas. A esperança diminuiu, mas sobrevive. Esperança de fazer
jornalismo que sirva pra transformar - ainda que de forma modesta e
pontual. Infelizmente, está difícil continuar cumprindo esse
compromisso aqui na Globo. Por isso, estou indo embora.
Quando entrei na TV Globo, os amigos, os antigos colegas de
Faculdade, diziam: "você não vai agüentar nem um ano naquela TV que
manipula eleições, fatos, cérebros". Agüentei doze anos. E vou
dizer: costumava contar a meus amigos que na Globo fazíamos - sim -
bom jornalismo. Havia, ao menos, um esforço nessa direção.
Na última década, em debates nas universidades, ou nas mesas de bar,
a cada vez que me perguntavam sobre manipulação e controle político
na Globo, eu costumava dizer: "olha, isso é coisa do passado; esse
tempo ficou pra trás".
Isso não era só um discurso. Acompanhei de perto a chegada de
Evandro Carlos de Andrade ao comando da TV, e a tentativa dele de
profissionalizar nosso trabalho. Jornalismo comunitário, cobertura
política - da qual participei de 98 a 2006. Matérias didáticas sobre
o voto, sobre a democracia. Cobertura factual das eleições, debates.
Pode parecer bobagem, mas tive orgulho de participar desse momento
de virada no Jornalismo da Globo.
Parecia uma virada. Infelizmente, a cobertura das eleições de 2006
mostrou que eu havia me iludido. O que vivemos aqui entre setembro e
outubro de 2006 não foi ficção. Aconteceu.
Pode ser que algum chefe queira fazer abaixo-assinado para provar
que não aconteceu. Mas, é ruim, hem!
Intervenção minuciosa em nossos textos, trocas de palavras a mando
de chefes, entrevistas de candidatos (gravadas na rua) escolhidas a
dedo, à distância, por um personagem quase mítico que paira sobre a
Redação: "o fulano (e vocês sabem de quem estou falando) quer esse
trecho; o fulano quer que mude essa palavra no texto".
Tudo isso aconteceu. E nem foi o pior.
Na reta final do primeiro turno, os "aloprados do PT" aprontaram; e
aloprados na chefia do jornalismo global botaram por terra anos de
esforço para construir um novo tipo de trabalho aqui.
Ao lado de um grupo de colegas, entrei na sala de nosso chefe em São
Paulo, no dia 18 de setembro, para reclamar da cobertura e pedir
equilíbrio nas matérias: "por que não vamos repercutir a matéria
da "Istoé", mostrando que a gênese dos sanguessugas ocorreu sob os
tucanos? Por que não vamos a Piracicaba, contar quem é Abel Pereira?"
Por que isso, por que aquilo... Nenhuma resposta convincente. E uma
cobertura desastrosa. Será que acharam que ninguém ia perceber?
Quando, no JN, chamavam Gedimar e Valdebran de "petistas" e, ao
mesmo tempo, falavam de Abel Pereira como empresário ligado a um ex-
ministro do "governo anterior", acharam que ninguém ia achar
estranho?
Faltando seis dias para o primeiro turno, o "petista" Humberto Costa
foi indiciado pela PF. No caso dos vampiros. O fato foi parar em
manchete no JN, e isso era normal. O anormal é que, no mesmo dia,
esconderam o nome de Platão, ex-assessor do ministério na época de
Serra/Barjas Negri. Os chefes sabiam da existência de Platão,
pediram a produtores pra checar tudo sobre ele, mas preferiram não
dar. Que jornalismo é esse, que poupa e defende Platão, mas detesta
Freud! Deve haver uma explicação psicanalítica para jornalismo tão
seletivo!
Ah, sim, Freud. Elio Gaspari chegou a pedir desculpas em nome dos
jornalistas ao tal Freud Godoy. O cara pode ter muitos pecados. Mas,
o que fizemos na véspera da eleição foi incrível: matéria mostrando
as "suspeitas", e apontando o dedo para a sala onde ele trabalhava,
bem próximo à sala do presidente.. . A mensagem era clara. Mas,
quando a PF concluiu que não havia nada contra ele, o principal
telejornal da Globo silenciou antes da eleição.
Não vi matérias mostrando as conexões de Platão com Serra, com os
tucanos.
Também não vi (antes do primeiro turno) reportagens mostrando quem
era Abel Pereira, quem era Barjas Negri, e quais eram as conexões
deles com PSDB. Mas vi várias matérias ressaltando os personagens
petistas do escândalo. E, vejam: ninguém na Redação queria poupar os
petistas (eu cobri durante meses o caso Santo André; eram matérias
desfavoráveis a Lula e ao PT, nunca achei que não devêssemos fazer;
seria o fim da picada...).
O que pedíamos era isonomia. Durante duas semanas, às vésperas do
primeiro turno, a Globo de São Paulo designou dois repórteres para
acompanhar o caso dossiê: um em São Paulo, outro em Cuiabá. Mas,
nada de Piracicaba, nada de Barjas.!
Um colega nosso chegou a produzir, de forma precária, por telefone
(vejam, bem, por telefone! Uma TV como a Globo fazer reportagem por
telefone), reportagem com perfil do Abel. Foi editada, gerada para o
Rio. Nunca foi ao ar!
Os telespectadores da Globo nunca viram Serra e os tucanos
entregando ambulâncias cercados pelos deputados sanguessugas. Era o
que estava na tal fita do "dossiê". Outras TVs mostraram o vídeo, a
internet mostrou. A Globo, não. Provava alguma coisa contra Serra?
Não. Ele não era obrigado a saber das falcatruas de deputados do
baixo clero. Mas, por que demos o gabinete de Freud pertinho de
Lula, e não demos Serra com sanguessugas?
E o caso gravíssimo das perguntas para o Serra? Ouvi, de pelo menos
3 pessoas diretamente envolvidas com o SP-TV Segunda Edição, que as
perguntas para o Serra, na entrevista ao vivo no jornal, às vésperas
do primeiro turno, foram rigorosamente selecionadas. Aquele diretor
(aquele, vocês sabem quem) teria mandado cortar todas as
perguntas "desagradáveis" . A equipe do jornal ficou atônita.
Entrevistas com os outros candidatos tinham sido duras, feitas com
liberdade. Com o Serra, teria havido, deliberadamente, a intenção de
amaciar.
E isso era um segredo de polichinelo. Muita gente ouviu essa
história pelos corredores.. .
E as fotos da grana dos aloprados? Tínhamos que publicar? Claro.
Mas, porque não demos a história completa? Os colegas que estavam na
PF naquele dia (15 de setembro), tinham a gravação, mostrando as
circunstâncias em que o delegado vazara as fotos. Justiça seja
feita: sei que eles (repórter e produtor) queriam dar a matéria
completa - as fotos, e as circunstâncias do vazamento. Podiam até
proteger a fonte, mas escancarando o que são os bastidores de uma
campanha no Brasil. Isso seria fazer jornalismo, expor as entranhas
do poder.
Mais uma vez, fomos seletivos: as fotos mostradas com estardalhaço.
A fita do delegado, essa sumiu!
Aquele diretor, aquele que controla cada palavra dos textos de
política, disse que só tomou conhecimento do conteúdo da fita no dia
seguinte. Quer que a gente acredite?
Por que nunca mostraram o conteúdo da fita do delegado no JN?
O JN levou um furo, foi isso?
Um colega nosso, aqui da Globo ouviu a fita e botou no site pessoal
dele... Mas, a Globo não pôs no ar... O portal "G-1" botou na
íntegra a fita do delegado, dias depois de a "CartaCapital" ter dado
o caso. Era noticia? Para o portal das Organizações Globo, era.
Por que o JN não deu no dia 29 de setembro? Levou um furo?
Não. Furada foi a cobertura da eleição. Infelizmente.
E, pra terminar, aquele episódio lamentável do abaixo-assinado,
depois das matérias da "CartaCapital" . Respeito os colegas que
assinaram. Alguns assinaram por medo, outros por convicção. Mas, o
fato é que foi um abaixo-assinado em defesa da Globo, apresentado
por chefes!
Pensem bem. Imaginem a seguinte hipótese: a revista "Quatro Rodas"
dá matéria falando mal da suspensão de um carro da Volkswagen,
acusando a empresa de deliberadamente não tomar conhecimento dos
problemas. Aí, como resposta, os diretores da Volks têm a brilhante
idéia de pedir aos metalúrgicos pra assinar um manifesto em defesa
da empresa! O que vocês acham? Os metalúrgicos mandariam a direção
da fábrica catar coquinho em Berlim!
Aqui, na Globo, muitos preferiram assinar. Por isso, talvez,
tenhamos um metalúrgico na Presidência da República, enquanto os
jornalistas ficaram falando sozinhos nessa eleição...
De resto, está difícil continuar fazendo jornalismo numa emissora
que obriga repórteres a chamarem negros de "pretos e pardos". Vocês
já viram isso no ar? Sinto vergonha...
A justificativa: IBGE (e, portanto, o Estado brasileiro) usa essa
nomenclatura. Problema do IBGE. Eu me recuso a entrar nessa.
Delegados de policia (representantes do Estado) costumavam (até bem
pouco tempo) tratar companheiras (mesmo em relações estáveis)
como "concubinas" ou "amásias". Nunca usamos esses termos!
Árabes que chegaram ao Brasil no início do século passado eram
chamados de "turcos" pelas autoridades (o passaporte era do Império
Turco Otomano, por isso a nomenclatura) . Por causa disso,
jornalistas deviam chamar libaneses de turcos?
Daqui a pouco, a Globo vai pedir para que chamemos a Parada Gay
de "Parada dos Pederastas". Francamente, não tenho mais estômago.
Mas, também, o que esperar de uma Redação que é dirigida por alguém
que defende a cobertura feita pela Globo na época das Diretas?
Respeito a imensa maioria dos colegas que ficam aqui. Tenho certeza
que vão continuar se esforçando pra fazer bom Jornalismo. Não será
fácil a tarefa de vocês.
Olhem no ar. Ouçam os comentaristas. As poucas vozes dissonantes
sumiram. Franklin Martins foi afastado. Do Bom dia Brasil ao JG,
temos um desfile de gente que está do mesmo lado.
Mas sabem o que me deixou preocupado mesmo? O texto do João Roberto
Marinho depois das eleições.
Ele comemorou a reação (dando a entender que foi absolutamente
espontânea; será que disseram isso pra ele? Será que não contaram a
ele do mal-estar na Redação de São Paulo?) de jornalistas em defesa
da cobertura da Globo:
"(...)diante de calúnias e infâmias, reagem, não com dúvidas ou
incertezas, mas com repúdio e indignação. Chamo isso de lealdade e
confiança".
Entendi. Ele comemora que não haja dúvidas e incertezas.. . Faz
sentido. Incerteza atrapalha fechamento de jornal. Incerteza e
dúvida são palavras terríveis. Devem ser banidas. Como qualquer um
que diga que há racismo - sim - no Brasil.
E vejam o vocabulário: "lealdade e confiança". Organizações ainda
hoje bem populares na Itália costumam usar esse jargão da "lealdade".
Caro João, você talvez nem saiba direito quem eu sou.
Mas, gostaria de dizer a você que lealdade devemos ter com
princípios, e com a sociedade. A Globo, infelizmente, não foi "leal"
com o público. Nem com os jornalistas. Vai pagar o preço por isso. É
saudável que pague. Em nome da democracia!
João, da família Marinho, disse mais no brilhante comunicado interno:
"Pude ter certeza absoluta de que os colaboradores da Rede Globo
sabem que podem e devem discordar das decisões editoriais no
trabalho cotidiano que levam à feitura de nossos telejornais, porque
o bom jornalismo é sempre resultado de muitas cabeças pensando".
Caro João, em que planeta você vive? Várias cabeças? Nunca, nem na
ditadura (dizem-me os companheiros mais antigos) tivemos na Globo um
jornalismo tão centralizado, a tal ponto que os repórteres trabalham
mais como bonecos de ventríloquos, especialmente na cobertura
política!
Cumpro agora um dever de lealdade: informo-lhe que, passadas as
eleições, quem discordou da linha editorial da casa foi posto
na "geladeira". Foi lamentável, caro João. Você devia saber como
anda o ânimo da Redação - especialmente em São Paulo.
Boa parte dos seus "colaboradores" (você, João, aprendeu direitinho
o vocabulário ideológico dos consultores e tecnocratas -
"colaboradores" , essa é boa... Eu não sou colaborador, coisa
nenhuma! Sou jornalista!) está triste e ressabiada com o que se
passou.
Mas, isso tudo tem pouca importância.
Grave mesmo é a tela da Globo - no Jornalismo, especialmente - não
refletir a diversidade social e política brasileira. Nos anos 90,
houve um ensaio, um movimento em direção à pluralidade. Já abortado.
Será que a opção é consciente?
Isso me lembra a Igreja Católica, que sob Ratzinger preferiu
expurgar o braço progressista. Fez uma opção deliberada: preferiram
ficar menores, porém mais coesos ideologicamente. Foi essa a opção
de Ratzinger. Será essa a opção dos Marinho?
Depois, não sabem porque os protestantes crescem...
Eu, que não sou católico nem protestante, fico apenas preocupado por
ver uma concessão pública ser usada dessa maneira!
Mas, essa é também uma carta de despedida, sentimental.
Por isso, peço licença pra falar de lembranças pessoais.
Foram quase doze anos de Globo.
Quando entrei na TV, em 95, lá na antiga sede da praça Marechal,
havia a Toninha - nossa mendiga de estimação, debaixo do viaduto. Os
berros que ela dava em frente à entrada da TV traziam uma dimensão
humana ao ambiente, lembravam-nos da fragilidade de todos nós, de
como nossa razão pode ser frágil.
Havia o João Paulada - o faz-tudo da Redação.
Havia a moça do cafezinho (feito no coador, e entregue em garrafas
térmicas), a tia dos doces...
Era um ambiente mais caseiro, menos pomposo. Hoje, na hora de dizer
tchau, sinto saudade de tudo aquilo.
Havia bares sujos, pessoas simples circulando em volta de todos nós -
nas ruas, no Metrô, na padaria.
Todos, do apresentador ao contínuo, tinham que entrar a pé na
Redação. Estacionamentos eram externos (não havia "vallet park", nem
catraca eletrônica). A caminhada pelas calçadas do centro da cidade
obrigava-nos a um salutar contato com a desigualdade brasileira.
Hoje, quando olho pra nossa Redação aqui na Berrini, tenho a
impressão que estou numa agência de publicidade. Ambiente asséptico,
higienizado. Confortável, é verdade. Mas triste, quase desumano.
Mas, há as pessoas. Essas valem a pena.
Pra quem conseguiu chegar até o fim dessa longa carta, preciso dizer
duas coisas...
1) Sinto-me aliviado por ficar longe de determinados personagens,
pretensiosos e arrogantes, que exigem "lealdade"; parecem "poderosos
chefões" falando com seus seguidores.. . Se depender de mim, como
aconteceu na eleição, vão ficar falando sozinhos.
2) Mas, de meus colegas, da imensa maioria, vou sentir saudades.
Saudades das equipes na rua - UPJs que foram professores;
cinegrafistas que foram companheiros; esses sim (todos) leais ao
Jornalismo.
Saudades dos editores - que tiveram paciência com esse repórter
aflito e procuraram ser leais às minúcias factuais.
Saudades dos produtores e dos chefes de reportagem - acho que fui
leal com as pautas de vocês e (bem menos) com os horários!
Saudades de cada companheiro do apoio e da técnica - sempre leais.
Saudades especialmente, das grandes matérias no Globo Repórter - com
aquela equipe de mestres (no Rio e em São Paulo) que aos poucos vai
se desmontando, sem lealdade nem respeito com quem fez história (mas
há bravos resistentes ainda).
Bem, pelo tom um tanto ácido dessa carta pode não parecer. Mas levo
muita coisa boa daqui.
Perdi cabelos e ilusões. Mas, não a esperança.
Um beijo a todos.
Rodrigo Vianna.
resposta do Chefe de Jornalismo da Rede Globo
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?mater ia_id=13180&alterarHomeAtual=1
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