jfbsb2022 Membro Novato |
# jul/22
Boa noite a todos.
É com tristeza que comunico o falecimento de um grande amigo e conhecido luthier de Brasília. O Achiles faleceu esta manhã após sofrer um infarto no início da semana. Muitos amigos tentaram conseguir uma vaga na UTI mas não deu tempo. Ele estava na UPA do Nucleo Bandeirante, DF, esperando transferência.
Ele chegou a Brasília ainda criança, vindo do Maranhão nos anos 70. Nos anos 80, após um breve período como policial, ele decidiu que iria perseguir seus sonhos, largou o serviço publico (sem poupar críticas ao sistema que ele conheceu de perto), e mergulhou de cabeça na música. Fabricou o próprio contrabaixo usando madeiras de móveis e portais que ele pegou de obras e reformas tão comuns naquela época na cidade do Gama, entorno do DF, onde ele cresceu. O contrabaixo frankentstein parecia um Steinberger, era headless também, porém com corpo menor. Com esse baixo ele tocou no cenário punk de Brasília dos anos 80 com a banda Succulent Fly. Sempre que visitava seu ateliê eu brincava com esse contrabaixo, e tirava um sarro. Lhe dizia como aquele troço era feio. E ele explicava que o construiu com quase nada de ferramentas, zero dinheiro e pedindo favores em marcenarias da região.
Na segunda metade dos anos 80 ele decidiu que queria ir além do que vinha fazendo no DF. Foi para Nova Iorque onde conheceu vários mestres da luteria. Passou também por Paris e Londres, onde trabalhou com vários grandes construtores e desenvolveu seu estilo de contrabaixos. Ele me contou essas histórias inúmeras vezes, mas infelizmente eu não lembro os nomes dos luthiers e shops onde ele esteve para poder compartilhar com vocês. Quem sabe outros que o conheceram possam complementar essa história? Eu comentava que ele devia escrever um livro contando sobre essas andanças pelo mundo, mas ele não tinha a menor vaidade para isso.
De volta a Brasília nos anos 90, ele participou da primeira fábrica da Condor aqui no entorno do DF. Pela Condor ele viajou o mundo e conheceu as recém criadas mega-fábricas de guitarras da Asia, especialmente Japão e Coréia. Naquela época as guitarras asiaticas inundaram o mercado, e a Condor o enviou nessa turnê para ele estudar e trazer as novidades para Brasília. Me disse que foi a primeira vez que viu o processo de fabricação em grande escala, com máquinas CNC automatizando tudo, desde a usinagem até o verniz. Nos EUA e na Europa tudo era ainda muito romântico. Apesar das gigantes americanas reinarem absolutas, elas não tinham a vazão e os baixos preços dos nossos amigos orientais. A Ásia estava estourando a boca do balão. Ele contava como ficou surpreso ao descobrir que, do mesmo galpão, das mesmas máquinas e mesmos processos, saíam diversas das maiores grifes que nós aqui no Brasil achávamos serem únicas e "super especiais". Não eram. Tinha nascido a massificação da fabricação de guitarras e ele foi lá conferir em primeira mão. Aliás, daquela fábrica da Condor saíram grandes luthiers do Distrito Federal, os mais conhecidos sendo o Achiles e Haroldinho Mattos. Salvo engano, o grande Celso Salim também passou por lá.
Foi nos meados dos anos 90 que conheci o Achiles, mas já na 208 norte. Lá ele instalou o primeiro humbucker que comprei na minha vida, pagando com minha mesada, e que está instalado na minha guitarra até hoje.
No cenário do rock de Brasília o Achiles conviveu com, e conheceu, literalmente todo mundo. Pense em qualquer banda de Brasília dos anos 80 pra cá, e provavelmente a guitarra passou lá pelo AGN - ou Achiles Guitar Network - nome de seu ateliê. Visitando a oficina do Achiles eu fiz muitas boas amizades ao longo dos anos, conheci grandes guitarristas e troquei muitas idéias com gente boa do mundo todo.
Até antes da pandemia, e durante quase 15 anos, eu frequentemente saía do trabalho às sextas feiras e ia até a QE 40 do Guará II para visitar o ateliê. Antes, fazíamos um happy hour na 208 norte, nas mesas da saudosa padaria do Inácio. Quando o Achiles mudou a oficina pro Guará, perdemos contato durante um tempo. Depois, quando fechei meu negócio na 208 e fui para mais perto, passei a visitá-lo no novo endereço.
Os passeios no Guará eram divertidos. Tinha um churrasquinho bem na frente, convenientemente ao lado de um enorme galpão de uma distribuidora de gelo e bebidas. Ali, na rua, reuníamos alguns poucos amigos, e dessa época guardo infinitas boas lembranças. Em meio a eletrônica, guitarra, amplificadores, jogávamos conversa fora sobre qualquer outro assunto que surgisse. Foram muitas boas risadas na porta da oficina. Durante a pandemia nos falávamos apenas por telefone, e algumas poucas horas mês sim, meses não. Uma das coisas que mais senti falta na pandemia era esse passeio às sextas, especialmente para conferir as novas invenções do nosso Professor Pardal (como o amigo Paulo Grego o chamava).
O Achiles estava sempre inventando algo. Toda vez que o visitava eu voltava com alguma plaquinha ou trapizonga eletronica para tentar decifrar, comentar, consertar ou testar. Mesmo tendo testemunhado alguns choques e explosões de minha autoria, ele confiava na minha eletrônica. Me ligava para discutir qual transistor, OPAMP, capacitor ou rebimboca da parafuzeta eu sugeria para usar na nova super invenção que ele tinha craneado aquela semana. Quando eu sugeria algo, ele mostrava que já tinha estudado o assunto. "Mas esse capacitor não é muito indutivo? Não vai matar meus agudos? Não é melhor um capacitor stacked em vez de wound nesse caso ai?" "Qual o slew rate desse opamp? Vai acompanhar uma pancada no slap bass?". Ele estudava cada detalhe da coisa e mesmo a eletrônica não sendo sua especialidade, ele não fazia pergunta ruim. E, claro, não tinha ferramenta de marcenaria que o Achiles não tivesse estudado a fundo. Me falava das regulagens mais sutis nas plainas, tipos de serras e todos os infinitos detalhes das tupias e suas fresas. Aliás ele era um mestre com a tupia. O Achiles nunca teve uma máquina CNC, fez tudo a mão com jigs e guias de tupia que ele mesmo construía. De dois anos para cá ele me falou que estava comprando, devagar, peça a peça para construir uma CNC para ajudá-lo na velhice. A grana está curta para todos, então ele foi comprando tudo aos poucos para montar depois. Recentemente ele comentou que estava tudo pronto pra montar a CNC. Seria o nosso projeto Professor Pardal para o segundo semestre. Eu contava com isso para ter mais uma desculpa para voltar a visita-lo.
Quinta feira passada falei com o Achiles e ao desligar pensei comigo "tá na hora deu ir lá". Eu tinha parado de falar "qualquer hora vou passar ai", porque furei tantas vezes que fiquei desacreditado. Agora estava prestes a ir visitá-lo pela primeira vez desde o início da pandemia. Não deu tempo.
Hoje cedo seu filho me deu a notícia de que ele estava em estado grave após um infarto. Estava me organizando para visitá-lo no hospital, porém menos de uma hora depois recebi nova ligação com a derradeira notícia.
Esta é minha pequena homenagem à memória do mestre Achiles. Vá em paz meu amigo. Te desejo muita luz na sua nova jornada.
Ele se chamava Achiles de Jesus. E hoje está em algum lugar melhor, mais perto de Deus (e certamente rindo de nós).
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