-Dan Veterano
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# set/12
Vida e saúde são palavras que deveriam aparecer sempre associadas. Infelizmente, isso nem sempre acontece. Neste exato momento, milhões de pessoas, no mundo inteiro, padecem de algum tipo de doença. Às vezes, a enfermidade é crítica; aparece do dia para a noite. Às vezes, é crônica; acompanha o paciente por anos. Seja como for, as doenças nos roubam o vigor – quando não a própria vida – e se escondem atrás de um sem-número de nomes catalogados pela medicina. Pasme: são cerca de 35 000 rótulos para males que vão da simples dor de barriga a processos cancerígenos graves.
Infortúnio? Não é bem assim. Pelo menos para os adeptos do Higienismo, um movimento criado nos Estados Unidos em 1830, inspirado nos ideais gregos de saúde física e mental. Quando o assunto é doença, os higienistas afrontam o senso comum. A causa das enfermidades, segundo eles, não são exclusivamente agentes externos como micróbios, bactérias e vírus – como prega a medicina oficial. Elas resultariam, sim, de desarranjos provocados por alimentação inadequada e estilo de vida marcado por hábitos que seriam contrários à natureza humana, como o uso do álcool, do cigarro, os excessos sexuais, repouso insuficiente e desequilíbrio emocional.
Para os higienistas, as 35 000 doenças resumem-se a apenas uma – a toxemia. Segundo a teoria, trata-se de uma intoxicação celular do organismo ou do envenenamento do sangue por excesso de toxinas. Ao cumprir as suas funções, o corpo humano produziria uma pequena quantidade de substâncias tóxicas que seria perfeitamente suportada e, em muitos casos, poderia até ser estimulante. O problema apareceria quando essas toxinas ultrapassam certo limite. Neste caso, teria início uma “crise de eliminação”, a tradução higienista para a palavra doença.
Quase desconhecida no Brasil, mas razoavelmente difundida nos Estados Unidos, onde é denominada Natural Hygiene (Higiene Natural), a escola higienista foi fundada por um grupo de médicos, biólogos e fisiólogos insatisfeitos com a prática médica do século XIX. Existem hoje no mundo cerca de 300 000 adeptos da doutrina. Seus métodos de tratamento caminham na contramão da medicina alopática. Quando o paciente apresenta um quadro anormal de saúde, um médico tradicional, na maioria das vezes, receita um medicamento para debelar o mal. Já o higienista não prescreve remédio algum, nem qualquer recurso considerado invasivo, sejam vacinas, soros ou cirurgias. Para ele, sintomas de doença – febre, gripe ou inflamação – são sempre um processo natural de eliminação de toxinas, que cessa mediante a purificação do organismo.
“A idéia não é nova”, diz o higienista Igal Flint, membro da Sociedade Americana de Higiene Natural. “Já existia na Grécia antiga, há pelo menos 2 700 anos.” A doutrina apóia-se na concepção de que o sintoma da enfermidade já é o próprio processo de cura, e o remédio, ao entrar na circulação sangüínea, faz o papel de vilão ao impedir a eliminação das toxinas. Resultado: a inofensiva gripe de hoje, ao ser sufocada pela ação de medicamentos, cedo ou tarde pode abalar o sistema imunológico do organismo e abrir campo para doenças degenerativas ou crônicas como câncer, artrite, osteoporose... enfim, um daqueles 35 000 nomes.
O médico higienista americano J. H. Tilden considerava que a toxemia resultava principalmente de putrefações intestinais advindas de um fenômeno não familiar à maioria das pessoas: a má combinação bioquímica dos alimentos (veja box na página 76). Isso causaria má digestão ou prisão de ventre, pontos de partida para outras complicações. A teoria higienista sustenta que certos alimentos, para serem processados, requisitam suco gástrico alcalino e outros, suco gástrico ácido. Quando reunidos eles provocariam a neutralização do meio digestivo, prejudicando a assimilação dos nutrientes e a eliminação dos resíduos. Estaria aí a senha de acesso para a toxemia. Os resíduos, que deveriam ser expelidos pelas fezes num prazo máximo de 24 horas, ficariam retidos no interior do cólon. E acabariam sendo parcialmente reabsorvidos pela corrente sangüínea, gerando a toxemia.
Não é uma boa notícia para a culinária nacional. Pelo critério da combinação higienista, arroz com feijão é uma mistura indigesta. O arroz, um amido (carboidrato), seria melhor digerido em ambiente alcalino, enquanto o feijão, uma proteína, demandaria um ambiente ácido. Separados, o arroz consome duas horas na digestão; o feijão, mais de três. Juntos, podem levar até seis horas para serem digeridos. Um típico prato brasileiro – arroz, feijão, bife, salada de alface com tomate e fruta de sobremesa –, embora agradável às papilas gustativas, gera, segundo o Higienismo, um desarranjo em cadeia. Isso explicaria a indisposição, o cansaço, a sonolência e a lentidão no raciocínio que a maioria das pessoas sente após o almoço. Além de provocar o consumo extra de reservas energéticas do corpo no processo digestivo, a mistura representaria uma porta aberta para a toxemia.
A combinação bioquímica foi estudada pela primeira vez pelo fisiologista russo Ivan Pavlov, que a relatou em 1902 no seu livro The Work of the Digestive Glands (O Funcionamento das Glândulas Digestivas). Em 1907, William Howard Hay avançou a pesquisa, a partir de um caso pessoal. Ele contraíra a Doença de Bright – passou a sofrer de pressão alta e problemas cardíacos. E decidiu experimentar em si mesmo uma dieta à base de alimentos sem manipulação industrial. Para surpresa de seus médicos, os sintomas desapareceram três meses depois. “O corpo não passa de uma síntese do que penetra nele sob a forma de alimentos ou bebidas”, escreveu Hay na obra A New Health Era (A Nova Era da Saúde). Mais adiante foi o higienista Herbert Shelton (veja quadro nesta página) quem aprimorou o método da combinação, apresentando-o de maneira abrangente no clássico Food Combining Made Easy (Um Jeito Simples de Combinar Alimentos), publicado em 1951.
Curiosamente, os seguidores do Higienismo num estágio mais avançado fazem pouco uso do sistema de combinação. Isso porque ingerem somente o que classificam como “alimento específico da espécie humana”, ou seja, frutas, verduras, legumes, grãos germinados, nozes, raízes e sementes. Seu cardápio limita-se a dois ou três itens, de preferência da mesma categoria e não cozidos. “É o estágio mais elevado do Higienismo, em que a pessoa come apenas alimentos crus e não há nem por que ter fogão em casa”, diz Tadeu Viscardi, diretor administrativo do spa Maria Bonita, do Rio de Janeiro, o primeiro do Brasil a empregar a dieta higienista em programas de emagrecimento e reeducação alimentar. Um higienista autêntico descarta as comidas industrializadas, os amidos refinados, os alimentos cozidos (à exceção de legumes levemente “abafados” no vapor e raízes) e as carnes e seus derivados. Açúcar, farinha branca e tudo o que advier desses produtos, como pães, massas, bolos, tortas e outros quitutes? Nem pensar.
Temas como esse consomem dezenas de páginas do livro Toxemia Explained, The True Interpretation of Cause of Disease (Toxemia Explicada, a Verdadeira Interpretação da Causa da Doença), de Tilden, editado pela primeira vez em 1926. O manual, reverenciado pelos higienistas, está repleto de espetadas no conceito tradicional de que doenças são causadas por agentes externos. A cada uma delas, claro, corresponde uma contra-estocada da medicina oficial. “Gostaria de saber em que escola de medicina séria se estuda essa teoria. Com certeza, em nenhuma”, diz Alfredo Halpern, professor de Endocrinologia na Universidade de São Paulo e integrante das equipes médicas do Hospital das Clínicas de São Paulo e do Hospital Albert Einstein. “Os hábitos de vida e os alimentos são importantes para a saúde, mas não há fundamento na teoria médica de que alimentos não possam ser misturados nem que se deva evitar remédios no tratamento das doenças.” A fórmula higienista também não empolga a maioria dos nutricionistas. “Qualquer dieta que exclua um grupo ou um tipo de alimento é inadequada”, diz Maria Aparecida Larino, nutricionista do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
A verdade é que, desde que surgiu, o Higienismo é visto com reservas pela comunidade científica. Shelton, ph.D. em Anatomia, Fisiologia e Bioquímica e autor de 40 obras cultuadas no mundo higienista chegou a amargar um mês de cadeia por suas idéias heterodoxas. Segundo Arlindo Fiorentin, diretor do Instituto Ortobio, do Rio de Janeiro, Shelton auxiliou mais de 50 000 pessoas a curar-se de doenças diversas sem o uso de medicamentos – só por meio de dieta, jejum e outros recursos higienistas para restabelecer a saúde. Do outro lado do Atlântico, o francês Albert Mosséri, discípulo de Shelton, também teve que enfrentar o combate da academia médica: sua clínica em Paris foi fechada e ele impedido de exercer a atividade até que a Justiça lhe garantiu o direito de atuar livremente.
Hoje, com o culto do corpo e a expansão das dietas, muitos médicos e nutricionistas até poderiam endossar o regime higienista, por julgá-lo bem intencionado, exceto talvez por ousadias como o veto a alimentos cozidos e, principalmente, às carnes. Mas o centro da polêmica continua sendo o poder terapêutico da dieta higienista. O que, segundo os adeptos da doutrina, é confirmado pelo registro de casos.
Um deles, o do paulistano Nairo Garcia dos Santos, 56 anos. Durante dez anos, Santos conviveu com um câncer de pele que o levou à mesa de cirurgia várias vezes, sem que o mal regredisse. Em maio do ano passado, orientado pelo higienista Igal Flint, ele adotou um regime quase que exclusivamente à base de frutas, legumes e verduras. Teria, assim, superado a doença. “Em menos de um mês, não havia mais nenhuma escara de câncer em meu rosto, peito e costas”, diz Santos.
A história do contador Carlos Antônio de Freitas, 58 anos, também chama a atenção. No último dia 20 de março, afirma Freitas, médicos do Instituto do Coração de São Paulo (Incor) comunicaram-lhe que tinha apenas três meses de vida. Diabético, Freitas equilibrava 102 kg em 1,73 m de altura, tinha pressão arterial de 28 por 18, taxas estratosféricas de triglicérides e de colesterol e seu pâncreas fraquejava. Teria sido salvo por uma dieta radicalíssima receitada por Fernando Travi, presidente da Sociedade Brasileira de Higienismo e Biogenia (Travi é autor do artigo “Vacina assassina”, publicado na Super de outubro).
Há casos em que o Higienismo prescreve não o alimento, mas a ausência dele. O jejum é empregado pelos higienistas como recurso terapêutico em situações em que o organismo não se encontra em condições de digerir o alimento e precisa eliminar toxinas mais rapidamente. Foi assim que a terapeuta corporal Maria Isabel Frias, 41 anos, adepta do regime higienista há oito, teria se livrado de uma infecção urinária dois anos atrás, quando se encontrava no sexto mês de gravidez. Para não prejudicar o bebê, ela jogou fora os antibióticos receitados por sua médica e, orientada por um higienista, mergulhou num jejum de 48 horas. “No final, a dor parou e um novo exame deu negativo”, diz Maria Isabel, referindo-se ao número de leucócitos presentes em seu organismo, altíssimo no exame anterior. O jejum teria funcionado como uma espécie de faxina geral no interior do corpo de Maria Isabel. Ao privar-se de alimento sólido e receber apenas água, o organismo teria eliminado as placas negras, como é chamada a matéria mórbida incrustada nas paredes do cólon, oriunda de más digestões. Mas nem só de comida dita “natural” e de jejuns vive o Higienismo. A filosofia sustenta que o homem, para gozar de saúde plena, precisa incorporar à sua vida banhos de sol, exercícios, repouso adequado, respirar ar puro, beber água limpa, abster-se de vícios e cultivar o pensamento positivo. Afinal, os higienistas afirmam trabalhar com as energias do indivíduo. E elas abrangeriam também a sua vida mental. A Hipócrates, o grego considerado o pai da Medicina, que há quase 30 séculos baseava-se no ideal de “mente sã, corpo são”, atribui-se a frase: “É a natureza que cura as doenças”. Os higienistas adoram ouvir isso.
Dissertem ou assistam ao filme do Pelé.
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