Cronica de Rubem Alves

    Autor Mensagem
    BokuWa
    Veterano
    # jun/08


    De vez em quando o diabo me aparece e temos longas conversas.Devil

    Em nada se parece com o que dizem dele: rabo, chifres, patas de bode e cheiro de enxofre. Cavalheiro de voz mansa e racional, bem vestido, apreciador de desodorantes finos, me surpreende sempre pela lógica dos seus argumentos. Nada de futilidades. Só fala sobre o essencial, estilo que aprendeu com Deus, nos anos em que foi seu discípulo. Percebi que era ele quando notei que trazia na sua mão direita o martelo e, na esquerda, a bigorna. Pois esta é a sua missão: martelar as certezas, ferro contra ferro, para ver se sobrevivem ao teste.

    Já se preparava para dar a primeira martelada quando o interrompi:

    - Que é isto que você vai bater? Acho que vai se partir em mil pedaços...

    A coisa que estava sobre a bigorna me parecia feita de louça, um bibelô delicado e frágil, e lamentei que o diabo fosse esmigalhá-la.

    - Não tenho outra alternativa - ele me respondeu. - É parte de uma aposta que fiz com Deus. Este bibelô delicado é o casamento. E você pode estar certo: não resistirá ao ferro do meu martelo!

    Fiquei indignado que ele estivesse maquinando coisa tão perversa e passei ao ataque.

    - Não é à toa que os religiosos dizem que você é o anti-Deus. Deus junta. Você separa! A sua bigorna já destruiu muitos lares!

    Ele não tinha pressa. Descansou o seu martelo e me falou com voz imperturbada:

    - Já estou acostumado às calúnias. Mas não existe coisa alguma mais distante da verdade. Se há uma coisa que eu desejo é um casamento duradouro, até que a morte os separe. Se ponho o casamento na bigorna é justamente para provar que a receita do Criador não funciona. A minha é muito mais eficaz.

    Como o meu silêncio indicasse minha disposição em ouvi-lo, ele continuou a falar:

    - Todo mundo sabe que, no início, eu era a mão direita de Deus. Estávamos de acordo em tudo. Ele mandava, eu fazia. Foi por causa do casamento que nos separamos. Até então trabalhávamos juntos. Quando Deus disse que não era bom que o homem estivesse só, e melhor seria que ele tivesse uma mulher, eu concordei. Quando Deus disse que esta união teria de ser sem fim, até a morte, eu aplaudi. Mas aí apareceu o pomo da discórdia. Para colar o homem na mulher, Deus foi buscar uma bisnaguinha de amor. Protestei. Argumentei:

    - Senhor! Amor é coisa muito fraca, de duração efêmera! Quem é colado com o amor logo se separa!

    Citei o poeta: "Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure!" Amor é chama tênue, fogo de palha. Não pode ser imortal. No começo, aquele entusiasmo. Mas logo se apaga. Chama de vela, fraquinha, que se vai com qualquer ventinho... Amor é bibelô de louça. Todos os amantes sabem disso, mesmo os mais apaixonados. E não é por isso que sentem ciúmes? Ciúme é a consciência dolorosa de que o objeto amado não é posse: ele pode voar a qualquer momento. Por isto o amor é doloroso, está cheio de incertezas. Discreto tocar de dedos, suave encontro de olhares: coisa deliciosa, sem dúvida. E é por isso mesmo, por ser tão discreto, por ser tão suave, que o amor se recusa a segurar. Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro pousado no dedo sabe que, a qualquer momento, ele pode voar. Como construir uma relação duradoura com cola tão fraquinha? Por isto os casais se separam, por causa do amor, pela ilusão de um outro amor. Qualquer tolo sabe que o pássaro só fica se estiver na gaiola. O amor é cola fraca para produzir um casamento duradouro porque no amor vive o maior inimigo da estabilidade: a liberdade. É preciso que o pássaro aprenda que é inútil bater asas. Um casamento duradouro é aquele em que o homem e a mulher perderam as ilusões do amor.

    - Foi aí que nos separamos - ele continuou.

    - Não porque discordássemos que casamento deveria ser eterno. É isto que eu quero. Nos separamos porque não estávamos de acordo sobre o que é que junta um homem e uma mulher, eternamente. Deus é um romântico. Eu sou um realista.

    - Qual foi então a sua proposta? Que cola deveria ser usada?- perguntei, perplexo.

    - O ódio. - respondeu ele. - Enganam-se aqueles que dizem que o ódio separa. A verdade é que o ódio junta as pessoas. Como disse um jagunço do Guimarães Rosa, quem odeia o outro, leva o outro para a cama. Diferente do fogo da vela, o fogo do ódio é como um vulcão. Não se apaga nunca. Por fora pode parecer adormecido. No fundo, as chamas crepitam. A diferença entre os dois? O amor, por causa da liberdade, abre a mão e deixa o outro ir. No amor existe a permanente possibilidade de separação. Mas o ódio segura. Não tenha dúvidas. Os casamentos mais sólidos são baseados no ódio. E sabe por que o ódio não deixa ir? Porque ele não suporta a fantasia do outro, voando livre, feliz. O ódio constrói gaiolas, e ali dentro ficam os dois, moendo-se mutuamente numa máquina de moer carne que gira sem parar, cada um se nutrindo da infelicidade que pode causar no outro. As pessoas ficam juntas para se torturarem. Não menospreze o poder do sadismo. Ah! A suprema felicidade de fazer o outro infeliz!

    Com estas palavras ele tomou do seu martelo e voltou ao seu trabalho:

    - Tenho de provar que eu, e não Deus, sou quem sabe a receita do casamento que só a morte pode separar.

    Eu me persignei três vezes e compreendi que o inferno está mais perto do que eu pensava.

    (Retorno e Terno)
    Rubem Alves


    É Dercy, mas não achei nada aqui na busca.

    shoyoninja
    Veterano
    # jun/08
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    BokuWa
    É um texto interessante.
    Gostei.

    Sab_Ian
    Veterano
    # jun/08
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    Gostei também.

    Negotiberio
    Veterano
    # jun/08
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    BokuWa

    Quem foi o cristão que escreveu isso?

    thiaguinhu
    Veterano
    # jun/08
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    gostei tb ...

    BokuWa
    Veterano
    # jun/08
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    Negotiberio
    Quem foi o cristão que escreveu isso?

    Oh infeliz, não está lá no titulo: Cronica de Rubem Alves

    brunohardrocker
    Veterano
    # jun/08
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    Se o texto fala que o amor não mantém duas pessoas unidas até a morte, e que o ódio mantém, prefiro então amar mais de uma vez.

    Horcruxes
    Veterano
    # jun/08
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    BokuWa
    Gostei do texto, man. Positivei seu outro post por isso... ^^
    Mas eu prefiro amar por pouco tempo do q passar a vida inteira odiando... quem ama se ferra, quem odeia também, a diferença é q quem se ferra pq ama sabe arcar com as consequências disso, e quem odeia não.

    Sumerrew
    Veterano
    # jun/08
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    ótimo texto cara

    The Splinters
    Veterano
    # jun/08 · Editado por: The Splinters
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    Crônica da fase meditativa de Rubem Alves. Há uma forte sugestão nietzscheana e certo pessimismo - uma sugestão de conspiratação existente, talvez - presentes nesta excelente crônica.

    A última frase também abre espaço a interpretações equivocadas como a do "conformismo".

    Kensei
    Veterano
    # jun/08
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    Relembra a frasezinha de que amor e ódio estão muito próximos. EU discordo, nenhuma experiência que vivi até hoje pode comprovar a validade dessa frase.

    Outra coisa interessante, e que pode ser interpretada dependendo do ponto de vista, é a premissa de que amar, representa, necessariamente, abrir mão de sua liberdade individual, para esse autor (ou o Diabo) isso representa uma prisão.

    Porém, é essa liberdade individual, é essa forma exacerbada de pensar apenas no EU, que está construindo essa sociedade violenta, desagragadora, individualista em que vivemos, ou seja, do jeito que o Diabo gosta.

    Cabeça De Balde
    Veterano
    # jun/08
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    Texto bacana mesmo.
    Gostei também.

    Cabeça De Balde
    Veterano
    # jun/08
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    Me lembrei de uma frase de um certo Raul Seixas...


    "A gente agrada a Deus fazendo as coisas que o diabo gosta"

    guga1232000
    Veterano
    # jun/08
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    Tem gente que tem dom para escrever.
    Gostei do texto!
    ^^

    BokuWa
    Veterano
    # jun/08 · Editado por: BokuWa
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    Nossa, teve mais gente que leu do que eu esperava.


    ps: Será que o pessoal do OT está ficando menos preguiçoso?

    shoyoninja
    Veterano
    # jun/08
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    Gostei do texto exatamente por ter margem a tantas interpretacoes.

    Ao inves de tentar enfiar ideias guela abaixo te obriga a pensar.

    Mas essas ideias de odio e amor absolutos sao meio ingenuas.

    MoOn White
    Veterano
    # jun/08
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    Cronica de Rubem Alves

    \ô_

    -sobre vassouras e bruxaas ;)
    [é baao]

    ZXC
    Veterano
    # jun/08
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    o diabo me aparece e temos longas conversas.Devil

    Mas que merda.....achei que era só comigo que isso acontecia...ahahahahahahaha

    Carla Andréa
    Veterano
    # jun/08
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    ZXC

    =PPPP

    _FrEd_
    Veterano
    # jun/08
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    Texto interessante, mas pessimista demais pro meu gosto...

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