Este mundo da injustiça globalizada

    Autor Mensagem
    Rato
    Veterano
    # dez/06


    Texto lido na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002
    Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa
    aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção
    para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral
    extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.
    Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e
    cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de
    algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria
    haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era
    surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento.
    Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os
    mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a
    quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes
    depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de
    tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o
    sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês.
    "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que
    tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
    Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem
    escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os
    para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha
    começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às
    autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então,

    desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem
    sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria
    comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos
    eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que
    ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade,
    saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de
    acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o
    camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido
    declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os
    dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
    Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze
    inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca
    mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a
    morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da
    nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para
    aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito
    de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com
    flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da
    balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre,
    uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e
    rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito
    como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida,
    sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação
    espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível
    imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
    Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para
    assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não
    tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às
    cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel
    social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do
    camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso
    de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da
    implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da
    felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento
    do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças
    que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais
    de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja
    voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de
    resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa
    que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça
    protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça

    dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se
    encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas
    trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se
    silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a
    propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal
    dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula,
    poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os
    programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda,
    anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo
    actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela
    dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos.
    Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em
    geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional
    no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje
    nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de
    globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me
    autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não
    interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado
    pelo gato da globalização económica.
    E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas
    circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo
    do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé
    comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora
    uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será
    precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à
    consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que
    fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos
    chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação
    da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária,
    escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais
    representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre
    resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção
    democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr
    outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a
    única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao
    poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais
    de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por
    definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo
    verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como
    se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas
    ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como
    se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal

    elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros
    "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse
    poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada,
    serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os certas conhecidas
    minorias eternamente descontentes...
    Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às
    congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um
    dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não
    se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras
    discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover
    um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos
    na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial,
    sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência
    digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples
    seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si
    mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
    Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês
    de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.



    previsão 27 páginas ;)

    bom dia =)

    monikenha
    Veterano
    # dez/06
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    mais de 7 linhas!
    =/

    Rato
    Veterano
    # dez/06
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    mais de 7 linhas!
    =/


    leia;

    vale a pena ;)

    vai por mim q vc não se arrependerá


    texto do Saramago

    monikenha
    Veterano
    # dez/06
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    Rato
    resume prá mim! é mais fácil!
    :P

    Luis Guitar
    Veterano
    # dez/06
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    Rato
    Ae, bom dia rato!!!!!!!!

    Rato
    Veterano
    # dez/06
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    monikenha
    resume prá mim! é mais fácil!

    mas ae perde a graça =/

    vc terá um ponto de vista diferente do meu ao ler ;)

    Luis Guitar
    Ae, bom dia rato!!!!!!!!

    dia ae guras

    monikenha
    Veterano
    # dez/06
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    Rato
    qual seu msn?

    Rato
    Veterano
    # dez/06
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    monikenha
    qual seu msn?

    senhorita;

    vc já tem meu msn
    inclusive está on-line :p

    monikenha
    Veterano
    # dez/06
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    Rato
    auhauhauhauhau
    sorry!

    Pardal
    Veterano
    # dez/06
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    Poxa texto gigante...

    Li menos da metade e achei que já tava terminando...

    Mas a justiça é possível apenas em sociedades utópicas. E como estas não existem, havemos de chorar, pois ela (justiça) já morreu. Antes ela do que eu!

    Mas não só a justiça morreu, gente...

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