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# jul/05
Farto de crise? Vá a Buenos Aires
31.07.2005 | Pior do que ouvir o presidente Nestor Kirchner dizer que a crise do governo Lula não afeta a economia argentina, para quem ainda se diverte como essa picuinha sul-americana, é ler este mês, na capa da revista americana Travel + Leisure, que Buenos Aires, “a Paris dos Pampas”, está de volta ao circuito das melhores cidades do mundo.
A Travel + Leisure é das raras publicações que vivem de turismo mas que não aceitam convite para nenhum tipo da viagem, inclusive os pacotes feitos para bajular a imprensa. Em nome dessa política, anuncia em seu expediente que seus “editores, repórteres e fotógrafos” são mais confiáveis, porque pagam suas próprias despesas.
Por exemplo, Mittchell Owens, que escreve sobre Buenos Aires, para dizer que a cidade está ressurgindo da quebradeira que, no começo da década, deixou os brasileiros olhando do alto de seus reais para seus hermanos portenhos, como se a velha rivalidade tivesse chegado ao fim da história.
Owens olhou Buenos Aires com outros olhos – a começar pelas mulheres. Vistas através de um garrafa de cerveja Quilmes numa mesa de esquina, elas são capazes de encarnar de repente, no meio da multidão que acompanha, no sábado à noite, os passos dos dançarinos de rua, “uma Uma Thurman loura com molejo elegante e o sorriso de uma rainha do concurso de beleza”.
Mas não só as mulheres. Entre os velhos músicos anônimos que mantêm o tango aceso na calçada, “o tocador de bandônion tem a aparência bem talhada e o terno sob medida de um banqueiro de investimentos recém-saído da forma”. O que, no caso, era o caso. Como o repórter apurou depois, tratava-se de um ex-funcionário da Goldman Sachs em Nova York que, estourada a bolha das especulações lastreadas no peso forte, voltou para Buenos Aires e foi “investir em sua própria cultura, sua própria identidade”.
Como, aliás, argentinos das mais variadas extrações andam fazendo, desde que a queda no precipício cambial deixou a globalização fora de seu alcance. Por onde andou, “das tradicionais casas de tango aos night-clubs que acabaram de abrir as portas”, Owens descobriu “essa nova sensação de auto-consciência que nada tem a ver com Europa-filia das velhas gerações e tem tudo a ver com o orgulho nacional apenas reencontrado”.
Não é de hoje que isso estava diante qualquer forasteiro que passasse pela Argentina sem a obrigação patriótica de constatar como o país empobreceu. Até nos lugarejos mais remotos da borda dos Andes, as lojas que anos atrás enchiam as vitrinas com as grifes importadas da moda outdoors voltaram a oferecer, com recomendações meio ufanistas dos vendedores, os bons e velhos equipamentos de montanhas que ficaram soterrados por mais de uma década sob a avalanche das marcas estrangeiras. Nas melhores praças, as delikatessen viraram mostruários das tradições rurais argentinas, em forma de queijo, fiambre e geléia. Nos restaurantes, as cartas de vinho passaram se apresentar como tratados de enologia local.
Bem, é verdade que nós temos a Daslu. Mas a turma da Travel + Leisure parece mais interessada, neste momento, nas butiques e galerias de arte de Palermo, onde os atuais proprietários, criados “numa recessão sem fim”, aprenderam a se sentir mais distantes das raízes européias do que seus ancestrais jamais estiveram”. Um deles, Ramiro López Serrot, filho de imigrantes espanhóis e franceses: “Pela primeira vez na vida eu me sinto um argentino”.
O fino, agora, é ser canchero, ensina a revista. “Mulheres que poucos anos atrás nunca tinham Hermès suficiente agora começaram a se embonecar com roupas criadas por estilistas locais, como Cora Groppo”. Na Recoleta, a última palavra em moda informal – que por sinal se instalou bem na frente da embaixada do Brasil – leva o nome do La Dolfina, um time argentino de polo. Há, em geral, “uma restauração geral do talento nativo”, segundo Dimity Giles, que – como o músico do bandônion – mudou-se de Nova York para Buenos Aires com o marido, um banqueiro de investimento. Nada mal, para um país que teve há quatro anos um presidente tirado da Casa Rosada de helicóptero, porque nem para renunciar podia sair na rua.
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